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Às vezes passa-nos despercebido, mas fazer diferente (ou outra coisa) pode simplesmente… ser deixar de fazer. Viciámo-nos em conteúdos, informação, distração, esquecendo que tudo no inconsciente fica e ele é infinito. Somos esponjas. Querendo abarcar tudo, corremos o risco de não abraçar nada. E se não nos precavemos ruminamos as muitas coisas que captamos. As ideias que julgamos muito nossas e muito sólidas bem podem vir do exterior, do muito que ouvimos, do tanto que lemos. Vivemos em ficção, afastados do real. E o Real é o brilho na folha acariciada pelo Sol, a flor exposta ao nosso olhar sossegado, o que verdadeiramente sentimos, pensamos e intuímos. Não está na frase ou ideia que se lê: porque essa é imaginação. Muito útil, sem dúvida, faz parte de aprendizagens e, se bem utilizada, poderá conduzir à realização, mas é preciso muita atenção, alguma vigilância para que ela se não transforme em não-vivência, uma espécie de névoa em que se vaga, quando não caótica e neurótica. A mente sossegada e atenta, mergulhada em concentração aberta, sem aditivos, opiniões, teorias, é, ela própria - mais límpida e mais clara - sábia. Responde ao que precisamos: dirige-nos ao equilíbrio. O nosso equilíbrio, que difere do que é equilibrado e necessário para outro. O jejum da catadupa de informação que consumimos é (ou pode ser) a porta que nos leva a casa: a nossa verdadeira (e intestina) Realidade.
No barbeiro (9)
Thomas
Estou a ficar tremendamente velho. Já me é quase tão difícil escrever como andar. Faço tudo devagar. Não consigo mais do que umas quantas frases por dia. E há poucos dias desmaiei. Suponho que o fim esteja próximo. Foi enquanto estava sentado a resolver um problema de xadrez. De repente, senti-me extenuado. Como se a própria vida se fosse desvanecendo. Não doía. Era apenas um pouco incómodo. E depois devo ter desmaiado, pois voltei a acordar com a cabeça no tabuleiro de xadrez. Reis e peões derrubados. Exactamente como gostaria de morrer. Mas isso talvez seja pedir demasiado, poder morrer sem dor. Se ficasse doente com dores terríveis e sentisse que a doença e as dores tinham vindo para ficar, seria simpático ter um amigo que me ajudasse a entrar no nada eterno. É certo que as leis o proíbem. Desgraçadamente as leis são conservadoras. De modo que os médicos prolongam a dor de uma pessoa, mesmo quando sabem que não há esperança. Chama-se a isto ética médica. Mas ninguém se ri. As pessoas que têm dores não se costumam rir. O mundo não é misericordioso. Diz-se que durante as grandes purgas na União Soviética se matavam os condenados à morte com um tiro na nuca a caminho das celas onde iriam aguardar pela sua execução. De repente, sem aviso prévio. Para mim isso era um lampejo de humanidade no meio de toda aquela miséria. Mas o mundo protestou: ao menos deviam ter o direito de morrer cara a cara com o pelotão de fuzilamento. O humanismo religioso tem mais que um cambiante de cinismo, bem, o humanismo em geral.
Mas como disse, acordei com a cara entre as peças de xadrez. Tirando isso, foi quase como acordar de um sono normal. Estava um pouco aturdido. Apesar disso, apenas me ocorreu voltar a colocar as peças no lugar. Mas era incapaz de me concentrar para resolver o problema. Estava a ponto de me sentar junto à janela quando tocaram à porta. Não vou abrir, pensei eu. Deve ser um evangelista a querer fazer-me acreditar na vida eterna. Têm proliferado muito ultimamente. Parece haver um surto de superstição. Mas voltaram a tocar e fiquei na dúvida. Eles costumam tocar apenas uma vez, apesar de tudo. De maneira que gritei “um momento” e fui abrir a porta, o que demorou algum tempo. Era um rapaz. Estava a vender rifas para a banda de música da escola local. Os prémios eram uma chacota não intencional para os velhos. Bicicleta, mochilas, botas de futebol e coisas desse tipo. Mas não quis parecer indiferente e comprei-lhe uma rifa. Isto apesar de não gostar daquelas bandas. Mas tinha deixado a carteira dentro da cómoda, por isso tive de lhe pedir para entrar. Caso contrário, aguardava-o uma longa espera. Ele veio atrás de mim. De certeza que nunca havia andado tão devagar. A caminho do quarto, tentei fazer passar o tempo perguntando-lhe que tipo de instrumento tocava. “Bem, não sei”, disse ele. Pareceu-me uma resposta estranha, mas supus que estivesse envergonhado. Eu tinha idade para ser bisavô dele. Talvez até fosse. Sei que tenho muitos bisnetos, mas não conheço nenhum deles. “Doem-te muito as pernas?”, perguntou o rapaz. “Não, o que acontece é que já estão muito velhas”, respondi. “Ah, está bem”, disse ele, provavelmente mais descansado. Tínhamos chegado à cómoda e dei-lhe o dinheiro. E então tive um ataque de sentimentalismo. Achei que o rapaz tinha perdido tanto tempo para vender uma só rifa que decidi comprar-lhe mais outra. “Não é necessário”, disse ele. Nesse instante senti uma tontura enorme. O quarto começou a andar à roda. Tive de agarrar-me à cómoda e a carteira caiu ao chão ainda aberta. “Uma cadeira”, disse eu. Assim que ma deu, o rapaz pôs-se a apanhar as moedas que estavam espalhadas pelo chão. “Obrigado, rapaz”, disse eu. “De nada”, respondeu. Poisou a carteira em cima da cómoda, olhou-me muito sério e disse: “Nunca sais?” Nesse momento dei-me conta de que a última vez que saíra devia ter sido a última. Não quero correr o risco de desmaiar no passeio. Isso significaria hospital ou lar de idosos. “Já não”, respondi. “Oh”, disse ele, de um modo que me fez ficar sentimental de novo. Tornei-me num velho palerma. “Como te chamas”, perguntei, e a resposta apenas fez piorar as coisas. “Thomas.” Naturalmente, não quis dizer-lhe que tinha o mesmo nome, mas deixou-me num estado de ânimo muito estranho, quase solene. Bem, não era de estranhar, pois os sinos tinham acabado de dobrar por mim, por assim dizer. Então, de repente, ocorreu-me dar ao rapaz alguma coisa que o fizesse lembra-se de mim. Já sei, já sei, mas eu não estava em mim. De maneira que lhe pedi que fosse buscar a velha coruja talhada que estava em cima da estante dos livros. “Isto é para ti”, disse eu, “é ainda mais velho do que eu”.”Oh, não”, disse ele, “porquê?” Por nada, meu rapaz, por nada. E obrigado pela tua ajuda. Fecha bem a porta quando saíres, por favor. “Muito obrigado.” Acenei-lhe com a cabeça. Depois saiu. Parecia contente. Mas talvez estivesse apenas a fingir.
Desde então tenho tido mais ataques de tonturas. Mas coloquei as cadeiras em pontos estratégicos. O quarto parece miseravelmente desordenado assim. Dá a impressão de quase não estar habitado. Mas ainda vivo aqui. Vivo e espero.
Kjell Askildsen, conto incluído na colectânea Um Repentino Pensamento Libertador
O tumulto (8)
No barbeiro
Há já muitos anos que deixei de ir ao barbeiro, o mais perto fica a cinco quarteirões daqui, o que se tornou bastante longe com o passar do tempo, mesmo quando o corrimão das escadas ainda não estava partido. Mas o escasso cabelo que me resta posso cortá-lo sozinho, e é isso que faço, quero conseguir olhar-me no espelho sem ficar demasiado deprimido, e também arranco sempre os pêlos mais longos do nariz.
Mas um dia, há menos de um ano, e por razões que não me quero alongar aqui, sentia-me particularmente só e passou-me pela cabeça ir cortar o cabelo, apesar de não estar nada comprido. Verdade seja dita que tentei convencer-me a não ir, é demasiado longe para ir a pé, disse a mim mesmo, as tuas pernas já não dão para isso, vais demorar pelo menos três quartos de hora a ir, e outro tanto a voltar. Mas de nada serviu. E depois?, respondi, tenho tempo de sobra, tempo é a única coisa que tenho de sobra.
De modo que me vesti e saí. Não tinha exagerado, demorou bastante tempo; nunca ouvi falar de alguém que ande tão devagar quanto eu, é um tormento, teria preferido ser surdo-mudo – pois de que vale ouvir, e para quê falar, quem ouve, e há ainda alguma coisa por dizer? Bem, haver há, mas quem ouve?
Por fim cheguei. Abri a porta e entrei. Oh, como o mundo muda. Lá dentro estava tudo diferente, apenas o barbeiro era o mesmo. Cumprimentei-o, mas não me reconheceu. Foi uma decepção, embora, naturalmente, tenha agido como se nada fosse. Não havia nenhuma cadeira livre. Eram três pessoas a fazer a barba ou a cortar o cabelo, outras quatro esperavam, e não havia nenhuma cadeira livre. Eu estava muito cansado, mas ninguém se levantou, aqueles que estavam à espera eram demasiado novos, não sabiam o que quer dizer velhice. Então virei-me para a janela e fiquei a olhar para a rua, fazendo de conta que era isso que queria, para que ninguém sentisse pena de mim. Aceito a cortesia, mas a compaixão podem guardá-la para os animais. Tenho visto com demasiada frequência – embora seja verdade que já faz algum tempo, mas ter-se-á o mundo tornado mais humano entretanto? -, tenho visto com demasiada frequência como os mais novos passam com total indiferença por cima de pessoas desamparadas estendidas no passeio, mas que mal metem a vista num gato ou cão feridos, derretem-se-lhes os corações. “Pobre cão”, dizem, ou “Gatinho, coitadinho, estás ferido?” Oh, há muitos amantes dos animais!
Afortunadamente não tive de ficar em pé mais do que cinco minutos, e foi um alívio poder sentar-me. Mas ninguém falava. Outrora, noutros tempos, o mundo inteiro, do lugar mais próximo ao mais longínquo, era atraído para dentro da barbearia. Agora reinava o silêncio, tinha feito todo aquele caminho em vão, já não existia mundo algum de que se quisesse falar. De modo que ao cabo de algum tempo decidi levantar-me e sair. Que sentido fazia continuar ali? O meu cabelo afinal nem sequer estava comprido. E ainda poupei dinheiro, de certeza que me teria custado umas boas coroas. Então caminhei os muitos milhares de pequenos passos até casa. Oh, o mundo está a mudar, pensei eu. E o silêncio a alastrar. É hora de morrer.
Kjell Askildsen, conto incluído na colectânea Um Repentino Pensamento Libertador
O Sol ainda não nascera. O mar apenas se distinguia do céu pelo leve preguear das águas, semelhante a um tecido finamente enrugado. Lentamente, à medida que o céu clareava, uma barra de sombra desceu no horizonte, separando o céu do mar, e o grande tecido cinzento ficou marcado por grossas linhas que se agitavam sob a superfície, perseguindo-se num ritmo infindável.
Ao aproximarem-se da praia as ondas erguiam-se, tomavam forma e desfaziam-se arrastando pela areia um ténue véu de espuma branca. A ondulação detinha-se, partia de novo, suspirando como alguém que dorme e cujo sopro vai e vem sem que a sua consciência o saiba. Pouco a pouco, a barra escura do horizonte clareou como as impurezas de um vinho antigo que se depositassem na garrafa, deixando transparecer o seu vidro. Lá ao fundo, também o céu se tornou translúcido, como se nele se houvesse desprendido um sedimento branco, ou o braço de uma mulher reclinada no horizonte erguesse ao alto uma lâmpada. Faixas de branco, amarelo e verde alongaram-se sob o céu como longas folhas de um leque. Depois a mulher ergueu a lâmpada ainda mais alto: o ar inflamado pareceu cindir-se em fibras vermelhas e amarelas, elevando-se da superfície verde num frémito ardente, como as chamas envoltas em fumo de uma fogueira. Pouco a pouco todas as fibras se fundiram numa única massa incandescente e o cinzento do céu transformou-se num milhão de átomos de um suave azul. A superfície do mar tornou-se transparente e as grandes linhas escuras quase desapareceram no ondular das águas e na sua cintilação. O braço que sustinha a lâmpada continuou a subir devagar até que uma grande labareda surgiu.
Um disco de fogo ardeu no rebordo do horizonte e o mar à sua volta tornou-se um esplendor de ouro.
A luz feriu as árvores do jardim, e as folhas agora transparentes iluminaram-se uma a uma. Um pássaro cantou alto. Houve uma pausa. Depois outro pássaro retomou, mais baixo, o mesmo canto. O Sol deu contornos às paredes da casa e poisou como a ponta de um leque numa persiana branca, deixando uma dedada de sombra azul sob a folhagem próxima da janela de um quarto. A persiana estremeceu ao de leve, mas dentro de casa tudo permaneceu vago e sem substância. Lá fora, os pássaros cantavam as suas melodias vazias.
Virginia Woolf, As Ondas
O corrimão (7)
O tumulto
Quando leio ou estou ocupado a resolver um problema de xadrez, costumo sentar-me junto à janela olhando para a rua. Nunca se sabe se vai acontecer algo que mereça a pena presenciar, apesar de ser pouco provável; a última vez foi há três ou quatro anos. Mas as coisas do dia-a-dia também podem oferecer um pouco de distração, e há sempre pelo menos uma ou outra coisa a mexer fora da janela, enquanto aqui dentro só mesmo eu e o ponteiro do relógio.
Mas há três ou quatro anos vi algo estranho, e foi a última coisa extraordinário que vi, embora, como já disse, não seja indiferente às ocorrências mais vulgares, por exemplo, pessoas que se envolvem em brigas, trocando socos e pontapés, ou gente que cai no passeio e que não se levanta por estar demasiado bêbeda ou doente para encontrar o caminho de casa, se é que a têm; muitos deles suponho que não a têm, não há casas suficientes no mundo.
Mas o que vi daquela vez foi diferente. Deve ter sido na Páscoa ou no Pentecostes, porque não era Inverno, e lembro-me de ter pensado que uma manifestação daquele tipo estaria muito provavelmente relacionada com uma das festas religiosas.
A minha janela dá para uma travessa, tão curta que a posso ver inteira sem a mínima dificuldade, tenho boa vista.
Estava sentado a olhar para duas moscas que copulavam no parapeito da janela, de modo que o mais provável era ser Pentecostes, servia-me um pouco de distração observá-las, embora praticamente não se movessem. Não me excitei ao observá-las, como me recordo que acontecia quando era mais novo – oh, recordo-me muito bem.
Seja como for, ali estava eu sentado a observar as duas moscas, e tinha acabado de tocar levemente na asa da fêmea e depois na do macho sem que dessem conta de nada, o que me pareceu estranho, porque o macho estava em cima da fêmea há pelo menos dez minutos, não estou a exagerar. Devia ter dedicado mais tempo da minha vida a estudar insectos, se bem que, na realidade, para quê? Bem, mas foi nesse momento que avistei um homem na ponta mais distante da rua, um homem que se comportava de forma muito suspeita. Era como se estivesse a bater os braços, e então gritou qualquer coisa, algo que no início não entendi. De certa forma, era um homem sistemático e com um peculiar sentido de ordem espacial, pois caminhava ou corria desde a primeira janela do lado direito da rua até à primeira janela do lado esquerdo, e assim por diante, batendo em todas as janelas antes de gritar qualquer coisa. Era fora do comum e estranho, e então abri a janela, foi antes de se estragarem as dobradiças, e ouvi-o gritar: “Jesus chegou.” Mas também gritava mais qualquer coisa, algo parecido com “Eu cheguei”. E quando se aproximou, pude ouvir que estava certo, era isso que gritava. “Jesus chegou, eu cheguei.” E não parava de correr de um lado para o outro da rua, batendo em todos os vidros das janelas que podia alcançar. Era um espectáculo revoltante, a loucura religiosa é revoltante.
A primeira reacção foi tão surpreendente quanto apropriada: Do alto de um quarto piso, saiu disparado um tamborete que aterrou algures no meio da rua. Não lhe acertou, o que, espero, não era sequer a intenção, mas desfez-se em pedaços, claro. Foi um esforço inglório, pois apenas fez o homem vociferar ainda mais, talvez lhe fizesse falta essa confirmação de que estava numa missão importante.
A reacção seguinte foi semelhante à primeira, mas menos concreta, e não sem o seu quê de humor. Uma janela escancarou-se e uma voz enfurecida gritou: “Você está doido varrido, homem!” Só então me dei conta de que o homem na rua era de facto perigoso, que despertava instintos latentes em alguns dos seus semelhantes, e então pensei: Não haverá aqui nenhuma pessoa sensata com um par de pernas saudáveis que possa descer e pôr um fim a tudo isto? Pouco a pouco umas quantas cabeças foram espreitando para fora das janelas ao longo da rua, mas lá em baixo aquele louco continuava a dominar a situação.
Sentia-me fascinado, tenho de admitir, mas com o passar do tempo talvez mais por todo o espectáculo na rua do que pelo protagonista. As pessoas haviam começado a manifestar-se, riam e gritavam umas para as outras por cima da cabeça do pobre coitado, eu nunca tinha visto nada assim, tanto contacto social instantâneo, houve até um homem no prédio ao lado que me gritou algo. Só entendi a última palavra, “blasfémia”, e obviamente não respondi. Se ao menos tivesse dito algo sensato, como por exemplo, “urgências”, então talvez, quem sabe, fosse possível estabelecer qualquer espécie de contacto de cortesia de janela a janela. Mas não tinha a mínima vontade de ter uma relação de cortesia com um homem adulto – ele tinha idade suficiente para ser filho da minha mulher há muito falecida – a quem não ocorre nada mais sensato para dizer que “blasfémia”, ainda não me sinto assim tão só.
Mas basta deste assunto. Eu estava, como disse, fascinado pelo bulício da vida nas janelas, recordava-me a minha infância, suponho que era melhor ser velho nesse tempo, menos solitário, penso eu, e, sobretudo, morria-se mais ou menos na idade adequada. Eis senão quando um homem aparece disparado de uma porta. Saiu cheio de pressa e direito ao louco. Agarrou-o por trás, deu-lhe a volta e bateu-lhe com tanta força no rosto que fez com que cambaleasse e caísse. Por um instante a rua ficou em completo silêncio, como se ninguém de atrevesse a respirar. Mas logo voltou o pandemónio e agora não restavam dúvidas de que o desagrado se dirigia ao agressor. As pessoas não tardaram a sair para a rua, e enquanto o causador imediato de todo o tumulto estava sentado, calado e aparentemente desconcertado, a alguns metros de distância, deu-se início a uma acalorada discussão da qual era impossível captar todos os detalhes, mas era evidente que o agressor também tinha os seus apoiantes, pois de repente dois jovens lançaram-se à garganta um do outro. Oh, que dia tão negro para a sensatez!
Entretanto, o louco havia-se levantado, e enquanto os jovens lutavam – muito provavelmente por causa dele, mas possivelmente por motivos bastante diferentes – e algumas das outras pessoas tentavam separá-los, ele retrocedia, distanciando-se cada vez mais, até que chegou à esquina mais próxima, deu a volta e pôs-se a correr. Foi um alívio, e há que dizer que ele sabia correr!
Quando a multidão na rua se deu conta de que o homem tinha desaparecido, a calma foi lentamente regressando e as janelas foram-se fechando umas atrás das outras. Fechei também a minha, não era um dia de calor. O mundo está repleto de insensatez e confusão, a falta de liberdade tem raízes profundas, a esperança pela igualdade vai diminuindo, as forças superiores são demasiado grandes, ao que parece. Temos de nos dar por satisfeitos por vivermos tão bem, dizem as pessoas, a maioria das pessoas vive pior. E depois tomam um comprido para as insónias. Ou para a depressão. Ou para a vida. Quando chegará uma nova geração que entenda o significado da palavra igualdade, uma geração de jardineiros e engenheiros florestais que derrube as grandes árvores que dão sombra a todas as pequenas, e que arranque os rebentos idiotas da árvore do conhecimento?
Kjell Askildsen, conto incluído na colectânea Um Repentino Pensamento Libertador
(...)
More than just the molecules that animate our flesh
We are eternal beings – sempiternally blessed
Free as the day we die – pure as we are born
Our souls remain deathless – no need to mourn
Our lives will teem with love and regret
I hope you remember – the things I can't forget
A Sr.ª M. (6)
O corrimão
Há alguns meses recebi a visita do meu senhorio. Tocou três vezes à porta antes que me desse tempo de abrir, isto apesar de ter ido o mais depressa que pude. Não podia saber que era ele. É raro alguém vir aqui, e quase todos são representantes de seitas religiosas a perguntar se estou em paz com Deus. Dá-me um certo prazer, mas nunca os deixo passar da porta, pois as pessoas que acreditam na vida eterna não são racionais, nunca se sabe o que podem acabar por fazer. Mas desta vez era, como já disse, o senhorio. Havia-lhe escrito há quase um ano para lhe dar conta de que o corrimão das escadas estava partido, e pensei que vinha por esse motivo, por isso deixei-o entrar. Olhou à sua volta. “O senhor vive bem aqui”, disse ele, e a afirmação foi tão tendenciosa que me fez logo ver que deveria ter cautela. “O corrimão das escadas está partido”, disse eu. “Sim, já vi, foi o senhor que o partiu?” “Não, porque haveria de ter sido eu?” “Suponho que é o único que o usa, porque, tirando o senhor, só vive gente nova neste prédio e não me parece que o corrimão se parta sozinho, não acha?” Era obviamente uma pessoa intratável e não quis entrar em nenhuma discussão com ele sobre como e porquê se partem as coisas, de modo que disse laconicamente: “Como quiser, mas preciso desse corrimão e tenho o direito de tê-lo.” Não respondeu e, em vez disso, disse apenas que a renda iria subir vinte por cento a partir do mês seguinte. “Outra vez?” disse, “e logo vinte por cento”. “Deveria ser mais”, respondeu, “este prédio só dá prejuízo, estou a perder dinheiro com ele.” Há muito tempo que deixei de discutir economia com pessoas que dizem perder dinheiro com algo de que se poderiam ter visto livres há trinta anos, de modo que não disse nada. Mas não precisou de uma resposta para continuar com o tema, ele era daquele tipo de pessoas que continuam sozinhas. Pôs-se a dissertar sobre todos os outros prédios que também davam prejuízo, era penoso ouvi-lo, devia ser um capitalista miserável. Mas eu não disse nada, e por fim cessaram as lamentações, já ia sendo tempo. Em vez disso perguntou-me, sem nenhuma razão aparente, se acreditava em Deus. Estive a ponto de perguntar a que deus se referia, mas limitei-me a negá-lo com a cabeça. “Mas tem de acreditar”, disse ele, afinal de contas sempre havia deixado entrar um deles em casa. Para dizer a verdade não me surpreendeu muito, uma vez que é bastante comum que as pessoas com muitas propriedades acreditem em Deus. Não quis, porém, dar azo a que passasse a outro tema, pois havia decidido uma vez por todas não deixar passar da porta nenhum evangelista, de modo que não o deixei continuar. “Então a renda vai subir vinte por cento”, disse-lhe, “suponho que seja esse o motivo da sua visita”. A minha resistência pareceu apanhá-lo de surpresa, pois abriu e fechou a boca um par de vezes sem que dela saísse qualquer som, algo que, presumo, deve ser pouco típico nele. “E espero que trate de mandar reparar o corrimão”, continuei. A sua cara pôs-se vermelha. “O corrimão, o corrimão” disse ele impacientemente, “não pára de fazer barulho acerca do corrimão”. Pareceu-me uma coisa inconveniente de ser dita e irritei-me um pouco. “Mas não entende”, disse eu “que de certa forma esse corrimão é tudo o que tenho para me agarrar à vida”. Arrependi-me assim que o disse, pois formulações precisas devem reservar-se a pessoas que se dispõem a pensar, de outro modo dá confusão. E confusão foi o que deu. Não tenho forças para repetir o que me disse, mas tratava-se em larga medida do que vem depois da morte. No final disse qualquer coisa sobre estar com os pés para a cova, referindo-se a mim, claro, e então zanguei-me. “Deixe de me aborrecer com as suas finanças”, disse-lhe, porque na verdade era do que se tratava, e como não se dispunha a sair logo, permiti-me dar uma pancada com a bengala no chão. Então saiu. Foi um alívio, senti-me contente e livre durante vários minutos, e recordo-me de ter dito a mim mesmo, para os meus botões, claro: “Não desistas, Thomas, não desistas.”
Kjell Askildsen, conto incluído na colectânea Um Repentino Pensamento Libertador
Maria (5)
A Sr.ª M.
Uma das poucas pessoas que sabe que ainda existo é a Sr.ª M. da loja da esquina. Duas vezes por semana traz-me aquilo de que preciso para viver, mão não é que seja um grande fardo para ela. Vejo-a muito raramente porque tem uma chave do apartamento e deixa as compras à porta, é a melhor forma, assim protegemo-nos mutuamente e mantemos uma relação pacífica, quase diria amigável. Mas um dia em que a ouvi levar a chave à porta para entrar, vi-me obrigado a chamá-la. Tinha caído e batido com o joelho, e não era capaz de chegar ao sofá. Por sorte, era um dos dias em que calhava vir com as compras, pelo que não tive de esperar mais do que quatro horas. Então chamei-a. Quis logo mandar vir um médico, mas as suas intenções eram boas, só a família mais chegada chama o médico por má-fé, sempre que querem livrar-se dos velhos. Expliquei-lhe tudo o que era preciso saber sobre hospitais e lares de idosos sem bilhete de retorno e, amável como era, pôs-me uma compressa. Depois preparou três sanduíches que me deixou numa mesa junto à cama, para além de uma garrafa de água. Por fim trouxe uma leiteira antiga que tinha encontrado na cozinha. “Para o caso de precisar”, disse ela.
E então saiu. À noite comi uma das sanduíches, e enquanto estava a comer ela apareceu para saber de mim. Foi tão inesperado que tenho de admitir que me deixei levar pelos sentimentos, e disse: “Que boa pessoa que a senhora é!” “Então, então”, respondeu laconicamente, começando a mudar-me a compressa no joelho. “Isto vai ficar bom”, disse ela, e continuou: “Então não quer saber dos lares de idosos. Mas sabe que agora já não lhe chamam lares de idosos, mas lares de terceira idade.” Fartámo-nos de rir os dois acerca disso, o ambiente ficou quase alegre. É um prazer enorme conhecer pessoas com sentido de humor.
A perna doeu-me durante quase uma semana e todos os dias vinha ver-me. No último dia disse-lhe: “Agora estou bem outra vez, graças a si.” “Nada de cerimónias”, interrompeu ela, “correu tudo lindamente”. Nisso tive de lhe dar razão, mas insisti que, sem ela, a minha vida podia ter tomado um rumo infeliz. “Oh, teria dado a volta de uma maneira ou de outra”, respondeu, “o senhor é muito obstinado. Tinha um pai que se parecia com o senhor, por isso sei muito bem do que estou a falar.” Senti que estava a tirar conclusões com base em factos pouco sólidos, afinal de contas não me conhecia, mas não quis que parecesse uma reprimenda, de modo que me limitei a dizer: “Receio que me tenha numa conta demasiado alta.” “Oh, não”, respondeu, “devia tê-lo conhecido, era um homem extremamente teimoso e difícil”. Disse-o com toda a seriedade, admito que me impressionou, fiquei com vontade de rir de alegria, mas mantive uma cara séria e disse: “Estou a ver. E o seu pai também viveu até ficar muito velho?” “Oh, sim, muito velho. Falava sempre com desdoiro da vida, mas nunca conheci ninguém que se esforçasse tanto por não a perder.” A isto podia sorrir sem problemas; era libertador, até me ri um pouco, e ela também. “Suponho que o senhor também seja assim”, disse ela, e impulsivamente perguntou-me se lhe deixava ler a mão. Estendi-lhe uma, não me recordo qual, mas era a outra que queria. Observou-a por alguns instantes e então sorriu e disse: “Tal como eu pensava, o senhor já devia ter morrido há muito tempo.”
Kjell Askildsen, conto incluído na colectânea Um Repentino Pensamento Libertador