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As sombras são mais vivas do que a realidade; mais longas, mais profundas e ricas; parecem ter vida própria, independente e protectora; mostram-se sempre acolhedoras. O símbolo torna-se mais importante do que a realidade; proporciona segurança; é fácil encontrar conforto no seu abrigo. Não importa o que se faça, ele jamais contradiz, nem se altera; tanto faz coroá-lo ou cobri-lo de cinzas. Extraímos enorme satisfação de coisas mortas, de um quadro, de uma conclusão, de uma palavra. Apesar de estarem mortos exalam perfumes que nos dão imenso prazer. O cérebro é sempre o dia de ontem, e o presente é a sombra do dia anterior, que se prolonga até o dia seguinte, um tanto alterada, mas conservando o ranço do passado. Portanto, o cérebro vive envolto em sombras, o que é mais seguro e confortador.
A consciência está sempre recebendo, acumulando, interpretando o que armazena; ela não pára de absorver por todos os poros; de acumular, de experimentar o que colheu, de julgar, compilar, modificar. Ela não só vê com os olhos, com o cérebro, mas também com todo esse manancial de informações e conhecimentos. A consciência faz do acto de receber a própria razão da sua existência. Guarda, nos seus íntimos e ocultos recessos, tudo aquilo que absorveu ao longo dos séculos — os instintos, as memórias, as defesas — sempre acumulando, ou rejeitando, com o intuito de acumular mais. Ao voltar-se para o mundo exterior, ela o faz para avaliar, comparar ou receber. E, dirigindo-se ao interior, fá-lo com aquela mesma visão exterior, que pesa, que compara e recebe; o despojamento interior não deixa de ser uma forma de acumular. E não tem fim esse processo limitado pelo tempo, em que há um misto de dor, de fugaz alegria e sofrimento.
Mas, observar, ver e escutar sem a interferência desta consciência uma acção que não visa receber — faz parte do movimento global da liberdade. Esta acção não tem um ponto de partida, e, portanto, age em todas as direcções, sem a barreira do tempo-espaço. É completo o seu acto de escutar e de ver. Disso nasce a atenção. A atenção abrange todas as distrações. Só na concentração há o conflito criado pela distração. Expresso ou não, verbalizado ou buscando uma expressão, o pensamento é a totalidade da consciência; o eterno binómio pensamento-sentimento e vice-versa. 0 pensamento nunca está quieto; a reacção que se exprime nas formas de pensamento, intensifica o processo da reacção. A beleza é a sensação expressa pelo pensar. O amor, igualmente, pertence ao campo do pensamento. E existirá amor e beleza dentro dos limites do pensamento? Haverá beleza enquanto o pensamento funciona? A beleza, o amor que ele conhece é o oposto da feiura e do ódio. Mas, a beleza, tal como o amor, não tem oposto.
Ver sem a interferência do pensamento ou da palavra, sem a reacção da memória, difere totalmente do “ver” baseado no pensamento e na sensação. É superficial o que se vê com o pensamento. Ver sem o pensar é visão integral. Contemplar uma nuvem sobre a montanha, sem o pensamento e suas reacções, é o milagre do “novo”; e isto não exprime beleza, porém é imensamente explosivo; um fenómeno único, que jamais existiu e que jamais se repetirá. Para ver e ouvir, a consciência deve aquietar-se, condição essencial para a avassaladora criação. Isto é a totalidade da vida, não o fragmento do pensamento. Não existe beleza, mas simplesmente uma nuvem sobre a montanha; e é isto criação.
Extasiava a beleza dos picos da serra, iluminados pelo ocaso, diante daquela terra tão imóvel. Só a cor existia, não diferentes coloridos; só existia o acto de escutar, não uma variedade de sons.
Ao acordarmos tarde, esta manhã, quando o sol acossava os montes, notámos aquela abençoada presença, que, como uma brilhante luz, parecia conter força e energia próprias. Assim como o murmúrio de águas distantes, percebia-se uma intensa actividade, não do cérebro, com seus desejos e frustrações, mas da própria paixão.
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Krishnamurti, Diário de Krishnamurti