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Em teoria eu todos os dias destruo tudo, compreendes, dizia ele [o avô]. Em teoria era possível, todos os dias e em qualquer momento desejado, destruir, deitar abaixo, extinguir tudo. E ele considerava esta ideia a mais espantosa. Eu mesmo também me apropriei desta ideia e tenho brincado com ela toda a minha vida. Mato quando quero. Deito abaixo quando quero. Destruo quando quero. Mas a teoria é apenas a teoria, dizia o meu avô, e depois acendia o cachimbo.
Thomas Bernhard, excerto do texto "Uma Criança" (Autobiografia)
Adiamos as perguntas decisivas, fazendo ininterruptamente perguntas ridículas, inúteis e infames e, quando fazemos as perguntas decisivas, é tarde de mais. Toda a vida vamos adiando as grandes perguntas, até que elas se tornam uma cordilheira de perguntas e nos obscurecem. Mas nessa altura é tarde de mais. Devíamos ter a coragem (face àqueles a quem temos de perguntar, como face a nós próprios) de os atormentar com perguntas, sem consideração nenhuma, implacavelmente, não os poupar não os burlar com a complacência. Ficamos arrependidos de não termos perguntado nada, quando aquele a quem tínhamos de perguntar já não pode ouvir essas perguntas, já está morto. Mas mesmo que tivéssemos feito todas as perguntas, teríamos obtido nem que fosse uma única resposta? Nós não aceitamos a resposta, nenhuma resposta, não podemos fazê-lo, não devemos, assim é a disposição da nossa sensibilidade e o nosso estado de espírito, assim é o nosso ridículo sistema, assim é a nossa existência, o nosso pesadelo.
Thomas Bernhard, excerto do texto "O Frio" (Autobiografia)
A vida não é senão a execução de uma pena, disse eu para comigo, tu tens de aguentar essa execução. A vida inteira. O mundo é uma prisão com muito pouca liberdade de movimento. As esperanças revelam-se uma falácia. Se és posto em liberdade, voltas a entrar logo nesse momento na mesma prisão. Tu és um presidiário, nada mais. Se te quiserem convencer de que isso não é verdade, escuta e cala-te. Considera que, ao nasceres, foste condenado a uma pena de prisão perpétua e que os teus pais são disso os culpados. Mas não lhes faças censuras banais. Quer queiras quer não, tens de seguir meticulosamente as prescrições que nessa prisão vigoram. Se não as seguires, a tua pena será agravada. Partilha o teu cativeiro com os teus companheiros de reclusão, mas não te alies nunca com os guardas. Essas frases surgiram-me então em mim por si próprias e pouco diferiam de uma prece. Ainda hoje me são familiares, por vezes digo-as para comigo, não perderam o seu valor. Contém a verdade de todas as verdades, por muito desajeitada que tenha sido a sua redacção. Aplicam-se a toda a gente. Mas nem sempre estamos dispostos a aceitá-las. Caem com frequência no esquecimento, algumas vezes durante anos. Mas depois voltam a aparecer e elucidam.
Thomas Bernhard, excerto do texto "o Frio" (Autobiografia)
Quando, como eu agora, olhamos para o passado, vemos que a pouco e pouco tudo se resolve por si mesmo. Lidamos toda a vida com pessoas que sobre nós não sabem absolutamente nada, mas afirmam continuamente que sobre nós sabem tudo, os nossos amigos e parentes mais chegados não sabem nada, porque nós próprios de nós pouco sabemos. Andamos a vida inteira a perscrutar-nos e vamos com frequência até ao limite dos nossos recursos intelectuais e desistimos. Os nossos esforços acabam em total inconsciência e em fatal e com frequência mortal depressão. O que nós próprios nunca a nós nos atrevemos a afirmar, porque nós próprios somos de facto incompetentes, atrevem-se outros a censurar-nos e omitem propositada e involuntariamente tudo o que nos diz respeito e há em nós. Todos nós somos continuamente coisas que outros deitam fora e, em cada novo dia, têm de se reencontrar, reunir, recompor. Nós próprios proferimos, à medida que avançamos na idade, uma sentença cada vez mais dura e temos de suportar o dobro na direcção contrária. A incompetência reina por todos os lados e provoca naturalmente, com o tempo, a indiferença. Depois de tanta susceptibilidade e vulnerabilidade durante tantos anos, já nos tornámos quase insusceptíveis e invulneráveis, apercebemo-nos das feridas, mas já não somos hoje tão hiper-sensíveis como antigamente. Aplicamos golpes mais fortes e são também mais fortes os que suportamos. A vida fala uma linguagem mais breve e mais esmagadora, que nós próprios também hoje falamos, já não somos tão sentimentais que ainda tenhamos esperança. A desesperança proporcionou-nos clareza sobre pessoas, objectos, relações, passado, futuro e assim por diante.
Thomas Bernhard, excerto do texto "A Cave" (Autobiografia)
As aleivosias que me fazem tropeçar e desesperar, que todos os dias me levam a ficar meio doido, deixam de ter em mim qualquer efeito quando inteiramente as explico, do mesmo modo que já nada me afecta nem sequer mortifica, quando o explico a mim próprio. Explicar a existência, não só a descobrir, mas esclarecê-la cada dia na mais larga medida é a única possibilidade de fazer dela alguma coisa. Antes não tinha essa possibilidade, a possibilidade de interferir no jogo diário e mortal da existência, não tinha para isso nem o entendimento nem a força, hoje o mecanismo põe-se em funcionamento por si próprio. É um processo de arrumação diário, a minha cabeça é arrumada, as coisas são colocadas no seu lugar todos os dias. O que não serve para nada é rejeitado e pura e simplesmente deitado para fora da minha cabeça. O procedimento sem dó nem piedade é também uma característica da idade avançada. Para resistir às modas, o isolamento e a firmeza do espírito são a única salvação. Quantas modas intelectuais já passaram por mim. Os abjectos aproveitadores de resíduos estão sempre em actividade. Mas os que dominam o mercado com os seus produtos em saldo são como tal facilmente reconhecíveis e, com o tempo, vão por si mesmos pisar a sua própria imundície. O sobrevivente tem de criar um recanto favorável num lugar isolado para as suas conquistas. O ar é rarefeito, mas eu estou habituado a ele. O ou/ou encontra-se há já bastante tempo em equilíbrio. O que é que se deve apreciar mais, o fraseado ou o elementar? Fica-se no absurdo. Eu escutei tudo e não segui nada. Eu experimento ainda hoje não saber como vai sair, fascina o solitário que voltei a ser.
Thomas Bernhard, texto "A Cave" (Autobiografia)