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(...) Não estarás tu a par do caso das eleições?
- Não, nunca leio jornais.
- Esse não vinha nos jornais. Contaram-mo.
- Diz lá então.
- Ora ouve! O caso passou-se há pouco tempo, numa aldeola do Baixo Egipto, durante as eleições para a junta de freguesia. Quando os funcionários do Governo abriram as urnas, notaram que na maioria dos boletins de voto estava escrito o nome Bargute. Ora os ditos funcionários do Governo não conheciam tal nome, que não figurava na lista de nenhum partido. Inquietos, logo se puseram à cata de informações; e acabaram por saber, pasmados de todo, que Bargute era o nome dum burro por quem toda a gente da aldeia nutria muita estima, por via da sabedoria do animal. quase todos os moradores tinham votado nele. Que me dizes tu a esta história?
Gohar respirou com júbilo; sentia-se extasiado. «São ignorantes e iletrados», disse para consigo, «e no entanto acabam de fazer a coisa mais inteligente conhecida no mundo desde que há eleições.» (...)
- Admirável! - exclamou Gohar. - E como acaba a história?
- É claro, não foi eleito. Estás tu a ver, um burro de quatro patas! O que eles queriam, lá os do Governo, era um burro só de duas patas.
- Por uma história tão maravilhosa, algo mereces, com toda a franqueza. Alegraste-me o coração. Que posso fazer por ti?
- Basta-me a tua amizade - disse o mendigo. - Já sabia que haverias de apreciar.
- Enches-me de honrarias - disse Gohar. - Até um dia destes, assim espero.
Albert Cossery, Mendigos e Altivos
Por vezes é um bom exercício: pensar o mundo como um colectivo cheio de tiques (...) E aos tiques do mundo poderemos chamar hábitos ou convenções; os tiques de uma cidade, eis o que um contabilista urbano, um bom observador sociológico, pode e deve procurar. E tiques urbanos, tiques sociais, são isso mesmo, tiques - ou seja, gestos involuntários, sem função. Gestos inúteis, gastos de energia. Quantos tiques tem uma cidade?, quanta energia é atirada para o lado oposto ao do alvo?
E, se quisermos, uma cidade, um colectivo, tem também essa copropraxia, essa maneira involuntária de insultar os outros, de os maltratar. Eis o que o médico de uma cidade pode e deve fazer (um médico-urbanista): (...) dar uma medicação para os tiques, ensinar processos gestuais e mentais que permitam controlar esses gestos irreflectidos e, acima de tudo, tentar diminuir a agressividade do colectivo; a cidade (...) não pára de nos insultar sem razão alguma. Perdoamos porque já nos foi explicada a sua doença. Copropraxia, eis a doença das grandes cidades.
Gonçalo M. Tavares, Matteo Perdeu o Emprego
No fundo, os homens separam-se assim: primeiro são muitos numa cidade, depois fogem sete para um barco - os que se julgam racionais - formam um grupo, uma associação, a associação dos homens em fuga, (...), depois quatro ficam loucos e os restantes afastam-se noutro bote, depois dois, depois um (...) - eis o que é estar vivo: de 100 mil passo para sete, de sete para três, de três para dois e, sempre, no fim: um, apenas - pois apenas se naufraga individualmente. E, de facto, o que aconteceu relata bem o percurso das diferentes racionalidades individuais: vais afastar-te dos que pensam de maneira muito diferente de ti. Um afastamento pacífico que envolve apenas a colocação de espaço entre a tua razão e a dos outros (fugir, afastar-se, etc. são métodos de armazenar espaço). E aqueles que estão mais próximos, aqueles cujas razões individuais estão mais próximas da tua razão individual, a estes acabarás por matar, violentamente. Porque estão já há muito tempo tão próximos de ti que não tens espaço para outra opção. Matas, pois.
Gonçalo M. Tavares, Matteo Perdeu o Emprego
O que são sete homens racionais num barco? Isto: sete razões num barco, sete potenciais conflitos, sete armas, sete argumentos, sete tensões, sete arcos e sete flechas, sete formas de ameaçar o que está em redor, sete modos de defesa; enfim, sete mortes, sete assassinos em potência.
Mas a entrada no pensamento dos outros é também isto: deixar que o corpo do outro ocupe o espaço que o nosso corpo ocupa neste momento. De certa maneira, isto: se concordo contigo, cedo o meu espaço.
Os sete homens no barco, porque têm o espaço limitado e em redor água e afogamento, têm isto muito claro. Não posso concordar contigo, não tenho espaço para concordar contigo, não tenho metros quadrados para poder concordar contigo; não sou, no limite, um proprietário suficientemente rico para te poder ceder a mina razão. Porque dar razão ao outro é isso mesmo, literalmente: é dar a sua razão ao outro, é oferecer a sua razão como o derrotado oferece a sua cabeça para que o vencedor decida do seu destino.
Corto a cabeça da razão, que me ofereceste, ou sou magnânimo? É evidente que os sete homens no barco não têm tempo para a compaixão. A compaixão requer um tempo que se aproxima da sensação de imortalidade. Posso ser bom para os outros porque terei ainda tempo para ser bom para mim próprio.
Gonçalo M. Tavares, Matteo Perdeu o Emprego
O problema é sempre este: és tu que estás na posse das perguntas - a minha liberdade é, pois, nula. Só posso responder. A idiotia comum é esta: a pessoa pensar que está livre porque pode responder, porque pode escolher. A grande diferença é esta: és obrigado a escolher: sim, não - e é essa obrigação que te rouba a liberdade mínima.
Nem prefiro não, nem prefiro sim. Pelo contrário.
Gonçalo M. Tavares, Matteo Perdeu o Emprego
Hesitar sempre foi um projecto de vida para alguns. Ser capaz de continuar a hesitar até ao fim, eis o difícil. Por vezes, um homem chega a meio da vida e desata a correr como se soubesse para onde vai. Outros não o fazem, e a sabedoria é isto: no momento da partida excitante e rápida pára-se para apertar os atacadores. Hesita-se por falta de equipamento para a decisão. Não estou equipado para a prática desportiva da decisão. Eis, pois, que digo simpaticamente: ganhe você, por favor. O que de certa maneira é isto: eu não tenho tempo para ganhar, estou tão ocupado a hesitar que aqui fico, em redor de nada, de modo a ter uma referência negativa. Quando vir qualquer coisa que me excite devo virar-lhe as costas; quando me estiver a entediar, é aí que eu fico. O meu nome só deve ser conhecido pelo moribundo. Que vai para falar e cala-se, que vai para respirar e não consegue, vai o seu coração para bater e fica suspenso - e como não bate, o momento seguinte não chega e o corpo inteiro morre, como se todos os convidados combinassem sair ao mesmo tempo de uma festa demasiado ruidosa -, mas, se todos os que faziam ruído saem ao mesmo tempo, a festa ruidosa, lá dentro, fica uma festa em silêncio e nada. E é lá para fora que vai o ruído. Porém, a diferença talvez seja esta: lá fora os convidados estão rodeados de mundo que, apesar de tudo, é mais largo e mais distraído do que uma sala individual. Vou fazer barulho para o meio do mundo, isto é: vou fazer silêncio (porque o mundo é grande e ruidoso).
Gonçalo M. Tavares, Matteo Perdeu o Emprego
Nada de nada: pensamos em pleno movimento; pensar enquanto se corre, pensar para poder correr. Musil e isto: "Uma ideia que se mantém mais de cinco minutos é já uma ideia fixa. Excepto na ciência." Diagnóstico: não estamos preparados para saber tudo logo no início, por isso mesmo continuamos e fazemos perguntas. (...) se avanças, deixas para trás a hipótese de recuar. Como um maluco que anda em redor de uma circunferência: ao mesmo tempo que avança, recua. Está a avançar para o ponto de partida, está a recuar para o destino - eis nós, enquanto seres vivos: coisas desnorteadas, embriagadas tentadas pelo caminho e não pela parte alta do mundo (olhamos em frente e por isso ficamos com essa cegueira parcial). Estamos loucos porque temos tempo: as funções e a necessidade guardaram uns minutos entre uma exigência e a exigência seguinte. Ficamos loucos com o tédio, mas também por um excesso de perguntas.
Gonçalo M. Tavares, Matteo Perdeu o Emprego