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O homem que desespera tem um motivo de desespero, pensa-se durante um momento, um breve momento; porque logo surge o verdadeiro desespero, o verdadeiro rosto do desespero. Desesperando duma coisa, o homem desesperava de si, e logo em seguida quer libertar-se do seu eu- Assim, quando o ambicioso que diz «Ser César ou nada» não consegue ser César, desespera. É por não se ter tornado César que já não suporta ser ele próprio. Mas no fundo, não é bem por não se ter tornado César que desespera, mas sim pelo eu que não se constituiu. Esse mesmo eu que doutro modo teria sido razão da sua alegria, alegria contudo não menos desesperada, ei-lo agora mais insuportável do que tudo! Analisando mais de perto, não é o facto de não se ter tornado César que é insuportável, mas o do eu não se ter tornado César, melhor dizendo, o que ele não suporta é não poder libertar-se do seu eu. Tê-lo-ia podido, tornando-se César, mas tal não sucedeu, e o nosso desesperado tem de se sujeitar. Na sua essência, o desespero não varia, pois não possui o seu eu, não é ele próprio. O ambicioso não se teria tornado ele próprio tornando-se César, é certo, mas ter-se-ia libertado do seu eu. É, portanto, superficial o dizer dum desesperado, como se fosse seu castigo a destruição do seu eu. Porque é justamente aquilo de que, para seu desespero, para seu suplício, ele é incapaz, visto que o desesperado lançou fogo àquilo que nele é refractário, indestrutível: o eu.
Desesperar de uma coisa não é ainda, por consequência, o verdadeiro desespero, é o seu início; está latente, como os médicos dizem a respeito duma enfermidade. Depois declara-se o desespero: desespera-se de si próprio. Olhai uma rapariga desesperada de amor, isto é, da perda do seu amado, morto ou inconstante. Tal perda não é desespero declarado, mas é dela própria que ela desespera. O eu de que ela se teria despojado, o eu que teria entregue deliciada se se tivesse tornado o bem do «outro», esse eu provoca agora a sua tristeza, porque tem de ser um eu sem o «outro». Esse eu que tem sido – aliás também desesperado, nem outro sentido – o seu tesouro, é-lhe agora um abominável vazio, morto o «outro», ou como que algo repugnante, pois provoca o abandono. Tentem dizer-lhe: «Estás a matar-te, minha filha!», e logo vereis como responde: «Ai de mim! Não, a minha mágoa está, precisamente, em não o conseguir».
Desesperar de si-próprio, querer, desesperado, libertar-se de si-próprio, tal é a fórmula de todo o desespero. A segunda é: querer, desesperado, sê-lo, reduzir-se àquele, ao desespero no qual alguém quer ser ele próprio, aquele em que se recusa a sê-lo. Quem desespera quer, no seu desespero, ser ele próprio. Mas então, é porque não pretende desembaraçar-se do seu eu? Aparentemente, não; mas se virmos as coisas mais de perto, encontramos sempre a mesma contradição. Este eu, que o desesperado quer ser, é um eu que ele não é (pois querer ser o eu que se é verdadeiramente é o contrário do desespero), o que ele quer, com efeito, é separar o seu eu do seu Autor. Mas aqui falha, não obstante desesperar, e todos os esforços do desespero, este Autor contínua a ser o mais forte e constrange-o a ser o eu que ele não quer ser. Entretanto, o homem deseja sempre libertar-se do seu eu, do eu que é, para se tornar um eu da sua própria invenção. Ser este «eu» que quer faria a sua delícia – se bem que noutro sentido o seu caso não seria menos desesperado – mas o constrangimento de ser este eu que não quer ser é razão do seu suplício.
(…)
Assim é o desespero, essa enfermidade do eu, a «Doença mortal». O desesperado é um doente de morte. Mais do que em nenhuma outra enfermidade, é o mais nobre do eu que nele é atacado pelo mal; mas o homem não pode morrer dessa doença fatal. A morte não é, neste caso, o termo da enfermidade: é um termo interminável. Salvar-nos dessa doença, nem a morte o pode, pois aqui a doença, com o seu sofrimento e… a morte, é não poder morrer.
É esse o estado do desespero. E o desesperado pode não o saber, pode conseguir (isto é sobretudo verdadeiro para o desespero que se ignora) perder o seu eu, e perdê-lo tão completamente que não fiquem vestígios: de qualquer modo a eternidade fará revelar-se o desespero do seu estado, retê-lo-á no seu eu. E porque nos espantaremos deste rigor? Pois que este eu, nosso ter, nosso ser, é ao mesmo tempo a suprema infinita concessão da Eternidade ao homem e a garantia que tem sobre ele.
Kierkegaard, Desespero, A Doença Mortal
Eis a fórmula que descreve o estado do eu, quando deste se extirpa completamente o desespero: orientando-se para si-próprio, querendo ser ele próprio, o eu mergulha, através da sua própria transparência, até ao poder que o criou.
Kierkegaard, Desespero, A Doença Mortal