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21.09.20

Sinto-me contente de que minha vida tenha sido aquilo que foi: rica e frutífera. Como poderia esperar mais? Ocorreram muitas coisas, impossíveis de serem canceladas. Algumas poderiam ter sido diferentes, se eu mesmo tivesse sido diferente. Assim, pois, as coisas foram o que tinham de ser; pois foram o que foram porque eu sou como sou. Muitas coisas, muitas circunstâncias foram provocadas intencionalmente, mas nem sempre representaram uma vantagem para mim. Na sua maioria dependeram do destino. Lamento muitas tolices, resultantes da minha teimosia, mas se não fossem elas não teria chegado à minha meta. Assim, pois, eu me sinto ao mesmo tempo satisfeito e decepcionado. Decepcionado com os homens, e comigo mesmo. Em contacto com os homens vivi ocasiões maravilhosas e trabalhei mais do que eu mesmo esperava de mim. Desisto de chegar a um julgamento definitivo, pois o fenómeno vida e o fenómeno homem são demasiadamente grandes. À medida que envelhecia, menos me compreendia e me reconhecia, e menos sabia sobre mim mesmo.

Sinto-me espantado, decepcionado e satisfeito comigo. Sinto-me triste, acabrunhado, entusiasta. Sou tudo isso e não posso chegar a uma soma, a um resultado final. É para mim impossível constatar um valor ou um não-valor definitivos; não posso julgar a vida ou a mim mesmo. Não estou certo de nada. Não tenho mesmo, para dizer a verdade, nenhuma convicção definitiva – a respeito do que quer que seja. Sei apenas que nasci e que existo; experimento o sentimento de ser levado pelas coisas. Existo à base de algo que não conheço. Apesar de toda a incerteza, sinto a solidez do que existe e a continuidade do meu ser, tal como sou.

O mundo no qual penetramos pelo nascimento é brutal, cruel e, ao mesmo tempo, de uma beleza divina. Achar que a vida tem ou não sentido é uma questão de temperamento. Se o não sentido prevalecesse de maneira absoluta, o aspecto racional da ida desapareceria gradualmente, com a evolução. Não parece ser isto o que ocorre. Como em toda questão metafisica, as duas alternativas são provavelmente verdadeiras: a vida tem e não tem sentido, ou então possui e não possui significado. Espero ansiosamente que o sentido prevaleça e ganhe a batalha.

Quando Lao Tsé diz: “Todos os seres são claros, só eu sou turvo”, exprime o que sinto na minha idade avançada. Lao Tsé é o exemplo do homem de sabedoria superior que viu e fez a experiência do valor e do não-valor, e que no fim da vida deseja voltar ao seu próprio ser, no sentido eterno e incognoscível. O arquétipo do homem idoso que contemplou suficientemente a vida é eternamente verdadeiro; em todos os níveis da inteligência, esse tipo aparece e é idêntico, quer se trate de um velho camponês ou de um grande filósofo como Lao Tsé. Assim, a idade avançada é... uma limitação, um estreitamento. E no entanto acrescentou em mim tantas coisas: as plantas, os animais, as nuvens, o dia e a noite e o eterno no homem. Quanto mais se acentuou a incerteza em relação a mim mesmo, mais aumentou meu sentimento de parentesco com as coisas. Sim, é como se essa estranheza que há tanto tempo me separava do mundo tivesse agora se interiorizado, revelando-me uma dimensão desconhecida e inesperada de mim mesmo.

Carl Gustav Jung, Memórias, Sonnos, Reflexões

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21.09.20

É importante que tenhamos um segredo e a intuição de algo incognoscível. Esse mistério dá à vida um tom impessoal e “numinoso”. Quem não teve uma experiência desse tipo perdeu algo de importante. O homem deve sentir que vive num mundo misterioso, sob certos aspectos, onde ocorrem coisas inauditas – que permanecem inexplicáveis – e não somente coisas que se desenvolvem nos limites do esperado. O inesperado e o inabitual fazem parte do mundo. Só então a vida é completa. Para mim, o mundo, desde o início, era infinitamente grande e inabarcável.

Conheci todas as dificuldades possíveis para me afirmar, sustentando os meus pensamentos. Havia em mim um daimon que, em última instância, era sempre o que decidia. Ele me dominava, me ultrapassava e quando tomava conta de mim, eu desprezava as atitudes convencionais. Jamais podia deter-me no que obtinha. Precisava continuar, na tentativa de atingir a minha visão. Como, naturalmente, meus contemporâneos não a viam, só podiam constatar que eu prosseguia sem me deter.

Ofendi muitas pessoas; assim que lhes percebia a incompreensão, elas me desinteressavam. Precisava continuar. À exceção dos meus doentes, não tinha paciência com os homens. Precisava seguir uma lei interior que me era imposta, sem liberdade de escolha. Naturalmente, nem sempre obedecia a ela. Como poderíamos viver sem cometermos incoerências?

Em relação a alguns seres, era sempre próximo e presente, na medida em que mantínhamos um diálogo interior; mas podia ocorrer que, bruscamente, eu me afastasse, por sentir que nada mais havia que me ligasse a eles. Tinha que aceitar, penosamente, o facto de que continuassem lá, mesmo quando nada mais tinham a me dizer. Muitos despertaram em mim um sentimento de humanidade viva, mas só quando esta era visível no círculo mágico da psicologia; no instante seguinte, o projector poderia afastar deles seus raios e nada mais restaria. Podia interessar-me intensamente por alguns seres, mas, desde que se tornavam translúcidos para mim, o encanto se quebrava. Fiz, assim, muitos inimigos. Mas, como toda personalidade criadora, não era livre, mas tomada e impelida pelo demónio interior.

(...)

Poderia talvez dizer: necessito das pessoas mais do que os outros, e, ao mesmo tempo, bem menos. Quando o daimon está em ação, sentimo-nos muito perto e muito longe. Só quando ele se cala é que podemos guardar uma medida intermediária.

O demónio interior e o elemento criador se impuseram a mim de forma absoluta e brutal. As ações habituais que eu projetava passavam, geralmente, para o segundo plano, mas nem sempre ou em toda parte.

Carl Gustav Jung, Memórias, Sonhos, Reflexões

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20.09.20

Não concordo quando dizem que sou um sábio ou um “iniciado” na sabedoria. Certo dia um homem encheu o chapéu com água tirada de um rio. O que significa isso? Eu não sou esse rio, estou à sua margem, mas nada faço. Outros homens estão à beira do mesmo rio e em geral pensam que deveriam fazer as coisas por iniciativa própria. Eu nada faço. Nunca imaginei ser “aquele que cuida para que as cerejas tenham haste”. Fico lá, de pé, admirando os recursos da natureza.

Há uma velha lenda, muito bela, de um rabino a quem um aluno, em visita, pergunta: “Rabbi, outrora havia homens que viam Deus face a face; por que já não acontece isso?” O rabino respondeu: “Porque ninguém mais, hoje em dia, é capaz de inclinar-se suficientemente”. É preciso, com efeito, curvar-se muito para beber no rio. A diferença entre a maioria dos homens e eu, reside no facto de que em mim as “paredes divisórias” são transparentes. É uma particularidade minha. Nos outros, elas são muitas vezes tão espessas, que lhes impedem a visão; eles pensam, por isso, que não há nada do outro lado. Sou capaz de perceber, até certo ponto, os processos que se desenvolvem no segundo plano; isso me dá segurança interior. Quem nada vê não tem segurança, não pode tirar conclusão alguma, ou não confia nas suas conclusões. Ignoro o que determinou a minha faculdade de perceber o fluxo da vida. Talvez tenha sido o próprio inconsciente, talvez os meus sonhos precoces, que desde o início marcaram o meu caminho.

O conhecimento dos processos do segundo plano estabeleceu, muito cedo, a minha relação com o mundo. No fundo esta relação é hoje o que já era na minha infância. Quando criança, sentia-me solitário e o sou ainda hoje, pois sei e devo dizer aos outros coisas que aparentemente não conhecem ou não querem conhecer. A solidão não significa a ausência de pessoas à nossa volta, mas sim o facto de não podermos comunicar-lhes as coisas que julgamos importantes, ou mostrar-lhes o valor de pensamentos que lhes parecem improváveis. A minha solidão começa com a experiência vivida em sonhos precoces e atinge seu ápice na época em que me confrontei com o inconsciente. Quando alguém sabe mais do que os outros, torna-se solitário. Mas a solidão não significa, necessariamente, oposição à comunidade; ninguém sente mais profundamente a comunidade do que o solitário, e esta só floresce quando cada um se lembra de sua própria natureza, sem identificar-se com os outros.

Carl Gustav Jung, Memórias, Sonhos, Reflexões

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20.09.20

O que quer que se diga, palavra alguma abarcará o todo. Ora, falar de aspectos particulares, onde só a totalidade tem sentido, é demasiado ou muito pouco. O amor (a caridade) “desculpa tudo, acredita em tudo, espera tudo, suporta tudo.” (I Coríntios XIII, 7). Nada se poderá acrescentar a esta frase. Pois nós somos, no sentido mais profundo, as vítimas, ou os meios e instrumentos do “amor” cosmogónico. Coloco esta palavra entre aspas para indicar que não entendo por ela simplesmente um desejo, uma preferência, uma predileção, um anelo, ou sentimentos semelhantes, mas um todo, uno e indiviso, que se impõe ao indivíduo. O homem, como parte, não compreende o todo. Ele é subordinado a ele, está à sua mercê. Quer concorde ou se revolte, está preso ao todo, cativo dele. Depende dele, e sempre tem nele o seu fundamento. O amor, para ele, é luz e trevas, cujo fim nunca pode ver. “O amor (a caridade) nunca termina”, quer o homem “fale pela boca dos anjos” ou prossiga com uma meticulosidade científica, nos últimos recantos, a vida da célula. Poderá dar ao amor todos os nomes possíveis e imagináveis de que dispõe; afinal, não fará mais do que abandonar-se a uma infinidade de ilusões. Mas se possuir um grão de sabedoria deporá as armas e chamará ignotum per ignotius (uma coisa ignorada por uma coisa ainda mais ignorada), isto é, pelo nome de Deus. Será uma confissão de humildade, de imperfeição, de dependência, mas ao mesmo tempo será o testemunho de sua liberdade de escolha entre a verdade e o erro.

Carl Gustav Jung, Memórias, Sonhos, Reflexões

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