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28.10.20

O estado de consciência de base em relação ao qual se fala de um “estado alterado de consciência” é o “estado comum de consciência”, sendo todavia fundamental recordar que este “não é algo natural ou dado, mas antes uma construção altamente complexa, um instrumento especializado para lidar com o nosso ambiente e com as pessoas nele”, sendo útil para fazer algumas coisas, mas inútil ou perigoso para outras. O estado comum de consciência é assim construído mediante a selecção que cada cultura faz do vasto potencial de consciência inerente ao ser humano, escolhendo e desenvolvendo um pequeno número apenas das suas possibilidades, rejeitando outras e ignorando muitas. Essa actualização de uma determinada e reduzida parte do campo de todos os possíveis e outros factores ocasionais são os elementos estruturais do estado comum de consciência. Nesta perspectiva, pode dizer-se que “somos simultaneamente os beneficiários e as vítimas da particular selecção da nossa cultura” e ao mesmo tempo compreender que o enorme interesse dos estados alterados de consciência resida na “possibilidade de usar e desenvolver potenciais latentes que residem fora da norma cultural”. O interesse dos estados alterados de consciência aumenta à medida que se reconheça que muitos dos contornos dessa “norma cultural” constituem na verdade uma “normose”, ou seja, uma “patologia da normalidade”, que impede a plena realização do melhor potencial humano, prendendo indivíduos e grupos no medo de ser quem no fundo são, com toda a alienação, conflitos e sofrimento resultantes. Alguns dos estados alterados de consciência – não todos, pois muitos podem ser tão ou mais condicionadores e patológicos do que o estado comum de consciência – podem assim ser reconhecidos e apreciados como aberturas da mesma consciência para dimensões mais amplas e plenas de si e do real, aquilo que Stanislav Grof vê como o potencial heurístico e curativo do holotropismo (a orientação para o todo) das “emergências espirituais”, que podem constituir o caminho por excelência para a evolução humana e a superação da crise da civilização.

Seria aqui interessante recordar que “realidade” vem do latim res (coisa) e este, segundo alguns, do proto-itálico reis, por sua vez procedente do proto-indo-europeu reh, ís, com o significado de “riqueza, bens”, afim ao antigo persa rāy- (paraíso, riqueza), ao avéstico rāy-, com o mesmo sentido (paraíso, riqueza), e ao sânscrito rayí (propriedade, bens). Se real designa originariamente o que é rico, pleno, bom, abundante, podemos indagar se o estado comum de consciência, ao actualizar apenas um restrito leque de potencialidades da mesma, não se priva implicitamente da plenitude do real, reduzindo-o ao que se limita a ser o objecto configurado ou construído nas estruturas, quadros e categorias dessa sua percepção limitada. Ao escrever isto estamos uma vez mais conscientes de que a categoria de “estado alterado de consciência” é muito ampla e inclui experiências extremamente distintas, quanto à sua origem, natureza e efeitos, abrangendo quer processos de ampliação e subtilização, quer de redução e regressão, da consciência e da experiência de si e do mundo.

Paulo Borges, Do Vazio ao Cais Absoluto ou Fernando Pessoa entre Oriente e Ocidente

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Agora parece que começa a ficar claro que isto vai ficar irrespirável.

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Alma-mesma

21.10.20

Nunca sabemos se ao Outro fazemos o bem ou o mal. Podemos beber estoicismos, como por aqui nos últimos dias se tem vertido pela voz do imperador-filósofo: bom sumo de madura fruta. Podemos meditar frequente e amplamente. Podemos nos pendurar em vários ramos na árvore da nossa experiência, quer da curta que é a nossa vida e estada, quer na da humanidade, que é de todos e infinda estrada. Podemos exaustivamente nos examinar. Podemos apenas o que de vulgo sói dizer-se seguir o coração. Podemos achar (ou querer achar) que estamos seguindo na senda da correcção, com lúcida razão, que são as nossas intenções e motivações boas, belas ou sãs. Mas, na verdade, nunca sabemos… se fazemos o mal ou o bem, se o fazemos bem ou mal. Se sabemos o que nos vai nos confins da alma (o que nem sempre é certo), dificilmente saberemos a leitura feita pela alma alheia – a menos que ela, sabendo precisamente o que nela vai, no-lo diga; e, dizendo ela, acreditemos nós por inteiro.

Do Outro desconhecemos a sua vida (e via) interna, os seus mecanismos mentais, as feridas que carrega, as doenças de que padece e delas se alguma – ou todas - projecta, os anseios que o governam, a realidade em que está ou cria, a sua verdade, o entendimento que tem, as sombras e luzes que o visitam, a consciência que o habita… Não nos doa a nós a cabeça de tanto em tudo pensar… No trato com o Outro, resta-nos crer, talvez, na Alma ela-mesma (talvez fosse mais correcto dizer-se Espírito), tentando procurar (e ver) em nós e Nele a pureza essencial. E esperar então que essa tal Alma-mesma, povoando os seres, presumindo-se conhecedora de verdades e mistérios, e sabendo tudo ler, nos envie uma proposta de resposta, em silêncio e em forma de (pres)sentir… não raro falada pelo vento.    

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20.10.20

Renunciando a tudo o resto, apega-te às poucas verdades seguintes. Lembra-te que o homem vive só no presente, neste momento fugaz: todo o resto da vida é ou passado e já ido, ou ainda não revelado. Esta vida mortal é uma pequena coisa, vivida num cantinho da terra; e pequena também é a mais duradoura fama — dependente, como é, de uma sucessão de pequenos homens de curta duração, desconhecedores das suas próprias pessoas, e muito mais ainda de uma outra já há muito morta e enterrada.

 

Se cumprires a tarefa que tens diante de ti aderindo sempre ao rigor da razão com zelo e energia, mas também com humanidade, desprezando todos os fins menores e mantendo pura e vertical a divindade dentro de ti, como se mesmo agora fosses enfrentar o seu chamamento — se te ativeres firmemente a isto, sem te deteres para nada, nem te esquivares de nada, procurando apenas em cada acção que passa a conformidade com a natureza e em cada palavra e afirmação a verdade intrépida, então a vida sã será tua. E neste caminho ninguém tem o poder de te deter.

Marco Aurélio, Meditações

 

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19.10.20

Não prezes as vantagens advindas de qualquer coisa que envolva quebra da fé, perda do respeito por ti próprio, ódio, suspeita, ou maldição dos outros, insinceridade, ou desejo de qualquer coisa que tenha de estar dissimulado ou escondido. Uma pessoa cuja principal atenção vai para o seu próprio espírito e para a divindade que há dentro de si, bem como para servir a sua excelência, não toma atitudes afectadas, não se queixa, e não suspira pela solidão nem tão pouco por uma multidão. E o melhor de tudo é que a sua vida ficará livre de contínuas buscas e esquivas. Não se preocupa se a alma dentro do seu corpo mortal será sua por muitos ou poucos anos; se neste preciso momento for a altura de partir, avançará tão prontamente como para desempenhar qualquer outra acção que possa ser realizada de maneira digna e tranquila. Não tem outra preocupação na vida que não seja a de manter o espírito fora de caminhos incompatíveis com os de um ser social e inteligente.

 

Num espírito disciplinado e purificado não há sinal de corrupção, mancha por limpar, nem ferida supurante. Nunca o destino poderá arrancar a tal homem a vida por realizar, como se fosse um actor a deixar o palco no meio da representação, antes da peça acabada. Não há nele nada de servil, nem tão pouco de vaidoso; nem se encosta aos outros, nem se isola deles; e não fica responsável por ninguém, mas também não culpado de evasão.

Marco Aurélio, Meditações

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18.10.20

Que haja nas tuas acções solicitude, sem deixares, porém, de ter em atenção o interesse comum; ponderação, mas sem indecisão; e que nos teus sentimentos não haja excesso pretensioso de refinamento. Evita a loquacidade, evita a solicitude excessiva. O deus que há dentro de ti deve presidir sobre um ser que seja viril e maduro, homem de estado, romano e soberano; um homem que não ceda terreno, qual soldado à espera do sinal de retirada do campo de batalha da vida, pronto a dar as boas vindas ao seu alívio; um homem cuja reputação não necessite de ser afirmada por si próprio, nem avalizada pelos outros. Eis o segredo da alegria, de não depender da ajuda de fora, e de não precisar de implorar a ninguém o favor da tranquilidade. Temos de nos pôr de pé por nós próprios, e não ser postos de pé.

Se a vida mortal te puder oferecer alguma coisa melhor do que a justiça e a verdade, o autodomínio e a coragem — isto é, paz de espírito na evidente conformidade das tuas acções com as leis da razão, e paz de espírito nas provações de um destino que não controlas — se, digamos, conseguires discernir um ideal mais elevado, nesse caso, aproveita-o com toda a tua alma e alegra-te com o prémio que encontraste. Mas se nada te parece melhor do que a divindade que mora dentro de ti, que orienta cada impulso, que pesa cada impressão, que abjura (nas palavras de Sócrates) as tentações da carne, e que confessa fidelidade aos deuses e compaixão pela humanidade; se, em comparação, achares tudo o resto mesquinho e sem valor, então não abras em ti espaço a quaisquer outras causas. Porque se alguma vez hesitares e te desviares, já não serás capaz de oferecer lealdade firme ao ideal que escolheste para ti próprio. Nenhumas ambições de outra natureza diferente podem disputar o título à bondade que pertence à razão e ao dever cívico; nem o aplauso do mundo, nem o poder, nem a riqueza, nem a alegria do prazer. À primeira vista, parece não haver incompatibilidade nestas coisas, mas logo elas levam a melhor e desequilibram o homem. Dir-te-ia, então, que escolhesses simples e espontaneamente o mais elevado e aderisses a ele. «Mas o melhor para mim é o mais elevado», dizes tu? Se é o melhor para ti como ser racional, segura-o bem; mas se o é meramente como animal, então di-lo abertamente e mantém o teu ponto de vista com a correspondente humildade — assegura-te apenas de que ponderaste bem o assunto.

Marco Aurélio, Meditações

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Se

14.10.20
Se podes conservar o teu bom senso e a calma
No mundo a delirar para quem o louco és tu...
Se podes crer em ti com toda a força de alma
Quando ninguém te crê...Se vais faminto e nu,
Trilhando sem revolta um rumo solitário...
Se à torva intolerância, à negra incompreensão,
Tu podes responder subindo o teu calvário
Com lágrimas de amor e bênçãos de perdão...

Se podes dizer bem de quem te calunia...
Se dás ternura em troca aos que te dão rancor
(Mas sem a afectação de um santo que oficia
Nem pretensões de sábio a dar lições de amor)...
Se podes esperar sem fatigar a esperança...
Sonhar, mas conservar-te acima do teu sonho...
Fazer do pensamento um arco de aliança
Entre o clarão do inferno e a luz do céu risonho...

Se podes encarar com indiferença igual
O triunfo e a derrota, eternos impostores...
Se podes ver o bem oculto em todo o mal
E resignar sorrindo o amor dos teus amores...
Se podes resistir à raiva e à vergonha
De ver envenenar as frases que disseste
E que um velhaco emprega eivadas de peçonha
Com falsas intenções que tu jamais lhes deste...

Se podes ver por terra as obras que fizeste,
Vaiadas por malsins, desorientando o povo,
E sem dizeres palavra, e sem um termo agreste,
Voltares ao princípio, a construir de novo...
Se puderes obrigar o coração e os músculos
A renovar um esforço há muito vacilante,
Quando no teu corpo, já afogado em crepúsculos,
Só exista a vontade a comandar avante...

Se, vivendo entre o povo, és virtuoso e nobre...
Se, vivendo entre os reis, conservas a humildade...
Se inimigo ou amigo, o poderoso e o pobre
São iguais para ti à luz da eternidade...
Se quem conta contigo encontra mais que a conta...
Se podes empregar os sessenta segundos
Do minuto que passa em obra de tal monta
Que o minuto se espraia em séculos fecundos...

Então, ó ser sublime, o mundo inteiro é teu!
Já dominaste os reis, os tempos, os espaços!...
Mas, ainda para além, um novo sol rompeu,
Abrindo o infinito ao rumo dos teus passos.
Pairando numa esfera acima deste plano,
Sem receares jamais que os erros te retomem,
Quando já nada houver em ti que seja humano,
Alegra-te, meu filho, então serás um homem!...
 

Rudyard Kipling

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14.10.20

Não desperdices o que resta da tua vida a especular sobre os teus vizinhos, a não ser que tenhas em vista qualquer benefício mútuo. Interrogares-te sobre o que fulano está a fazer e porquê, ou sobre o que ele está a dizer ou a pensar ou a planear — numa palavra, sobre qualquer coisa que te desvie da fidelidade ao soberano governador dentro de ti — significa uma perda de oportunidade para outra tarefa qualquer. Repara então que o fluir dos teus pensamentos está liberto de fantasias ociosas ou casuais, particularmente daquelas de natureza indiscreta ou maldizente. Um homem devia habituar-se de tal maneira a este modo de pensar que, subitamente perguntado, «Em que estás a pensar neste momento?» pudesse responder honestamente e sem hesitação, provando assim que todos os seus pensamentos eram simples e bondosos como convém a um ser social, sem o gosto pelos prazeres de imaginações sensuais, ciúmes, invejas, suspeitas ou quaisquer outros sentimentos que o fariam corar ao reconhecê-los em si próprio. Um homem assim, determinado aqui e agora a aspirar às alturas, é, de facto, um pastor e ministro dos deuses; porque está a usar plenamente aquele poder interior que pode manter um homem limpo de prazeres, à prova da dor, indiferente ao insulto e impermeável ao mal. É um concorrente ao maior dos concursos, a luta contra o domínio da paixão; fica completamente impregnado de rectidão, recebendo com sincera alegria o que quer que seja que lhe caiba em sorte e raramente se perguntando sobre o que os outros possam dizer, fazer ou pensar, excepto quando o interesse público o exija. Limita as suas actividades àquilo que lhe diz respeito, deixando a sua atenção presa ao seu particular fio da teia universal, procurando fazer com que as suas acções sejam honradas, e na convicção de que tudo o que lhe possa acontecer tem de ser para o melhor — porque o seu próprio destino está, ele próprio, sob orientação superior. Não esquece a relação fraterna de todos os seres racionais, nem que a preocupação por todos os homens é própria da humanidade: e sabe que não são as opiniões do mundo que deve seguir, mas apenas as dos homens cuja vida está confessadamente de acordo com a Natureza. Quanto aos outros, cuja vida não está assim organizada, ele lembra constantemente o carácter que eles mostram diariamente, dia e noite, em casa, e cá fora, e o tipo de sociedade que eles frequentam; e a aprovação de tais homens, que nem sequer se sentem bem consigo próprios, não tem, para ele, qualquer valor.

Marco Aurélio, Meditações

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13.10.20

A tua atenção é desviada para preocupações exteriores? Então, concede-te um espaço de sossego dentro do qual possas aumentar o conhecimento do bem e aprender a refrear a tua inquietação. Defende-te também de outro tipo de erro: a loucura daqueles que passam os seus dias com muita ocupação mas carecem de um qualquer objectivo em que concentrem todo o seu esforço, melhor, todo o seu pensamento.

Marco Aurélio, Meditações

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12.10.20

 Decide com firmeza, a todas as horas, como romano e como homem, fazer tudo aquilo que te chegar às mãos com dignidade, e com humanidade, independência e justiça. Liberta o espírito de todas as outras considerações. Isto podes tu fazer se abordares cada acção como se fosse a última, pondo de lado o pensamento indócil, o recuo emocional das ordens da razão, o desejo de causar uma boa impressão, a admiração por ti próprio, a insatisfação pelo que te calhou em sorte. Vê o pouco que um homem precisa de dominar para que os seus dias fluam calma e devotadamente: ele apenas tem de observar estes poucos conselhos, e os deuses nada mais lhe pedirão.

Marco Aurélio, Meditações

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