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Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Pergunta:
Que entendeis por transformação?
Krishnamurti:
É bem óbvia a necessidade de uma revolução radical. A crise mundial a exige. Nossas vidas a exigem. Os nossos incidentes, desejos, atividades, anseios de cada dia, a exigem. Os Nossos problemas a exigem. Faz-se necessária uma revolução fundamental, radical, porque tudo ruiu ao redor de nós. Embora, aparentemente, exista ordem, observa-se um lento declínio, uma lenta decomposição. A onda da destruição está superando constantemente a onda da vida.
É necessária, pois, uma revolução, mas não a revolução baseada em ideia. Tal revolução é apenas um prolongamento da ideia, e não uma transformação fundamental. Revolução baseada em ideia provoca morticínios, devastações, caos. Do caos não se pode extrair a ordem. Não se pode produzir deliberadamente o caos, para esperar desse caos tirar a ordem. Não sois os eleitos de Deus, para criar a ordem, da confusão. Esse modo de pensar é muito falso, próprio daqueles que estão provocando mais e mais confusão, com o fim de estabelecer a ordem, baseados na suposição de que, tendo em mãos o poder, terão todos os meios de estabelecer a ordem. Em vista da catástrofe que estamos presenciando — a constante repetição das guerras, o incessante conflito entre classes, entre pessoas, a horrível desigualdade económica e social, a desigualdade de capacidades e talentos, o abismo que se abre entre os que são muito felizes, livres de perturbações, e os que se debatem nas malhas do ódio, do conflito e do sofrimento — em vista de tudo isso, há necessidade de uma revolução, há necessidade de uma transformação completa, não achais?
Esta transformação, esta revolução radical é uma coisa final, ou uma coisa que se verifica de momento em momento? Sei que gostaríamos que fosse a coisa final, porque é muito mais fácil pensar em termos de distância. No fim, seremos transformados, no fim, seremos felizes, no fim encontraremos a verdade — mas, neste ínterim, continuemos a luta. Por certo, a mente que está pensando em termos referentes ao futuro, é incapaz de agir no presente; não está ela procurando a transformação e, sim, apenas, evitando a transformação. Que entendemos por transformação?
A transformação não está no futuro, não pode estar no futuro. Ela só pode realizar-se agora, momento por momento. Assim sendo, que entendemos por transformação ? Ora, é muito simples: é ver o falso como falso, e o verdadeiro como verdadeiro. Ver a verdade no falso, e ver o falso naquilo que foi aceite como verdade. Ver o falso como falso e o verdadeiro como verdadeiro, é transformação, porque quando se vê uma coisa claramente, como verdade, esta verdade liberta. Quando se vê que uma coisa é falsa, esta coisa falsa se extingue. Quando se vê que as cerimónias são vãs repetições, quando se percebe a verdade a respeito desta coisa e não se justifica a coisa, há transformação, não há? — porque é mais um grilhão que se desfaz. Quando se vê que a distinção de classes é falsa, gera conflitos, cria miséria, divisão entre os homens, se se percebe a verdade a esse respeito, essa própria verdade liberta. O próprio percebimento dessa verdade é transformação, não achais? Se, rodeados que estamos de tantas coisas falsas, percebermos a sua falsidade, momento por momento, haverá transformação. A verdade não é cumulativa. Ela se apresenta momento por morrento. O que é cumulativo, o que se acumula, é a memória, e através da memória nunca se achará a verdade, porque a memória pertence ao tempo, ao passado, ao presente e ao futuro. O tempo, que é continuidade, nunca achará aquilo que é eterno. A eternidade não é continuidade. O que tem duração não é eterno. A eternidade se acha no momento. A eternidade está no agora. O agora nao é reflexo do passado, nem continuação do passado através do presente, para o futuro.
A mente desejosa de transformação futura, ou que vê a transformação como um alvo final, nunca achará a verdade, porque a verdade é uma coisa que tem de vir de momento em momento, que tem de ser descoberta sempre de novo; não pode haver descoberta pela acumulação. Como se pode descobrir o novo, levando-se a carga do velho? Só com o desaparecimento dessa carga, se descobre o novo. Para descobrir o novo, o eterno, no presente, momento por momento, é necessário ter a mente extraordinariamente vigilante, que a mente não esteja em busca de resultado algum nem ocupada em vir a ser. A mente que está empenhada em vir a ser, jamais conhecerá a felicidade completa do contentamento; não o contentamento da complacência, não o contentamento por um resultado alcançado, mas o contentamento que vem quando a mente percebe a verdade em o que é, e a falsidade em o que é. A percepção dessa verdade é de cada momento, e essa percepção é retardada pela verbalização do momento.
A transformação não é um fim, um resultado. A transformação não é um resultado. Resultado implica resíduo, uma causa e um efeito. Onde há causalidade, tem de haver efeito, necessariamente. O efeito é simplesmente o resultado do vosso desejo de transformação. Quando desejais ser transformado, estais ainda pensando em termos de vir a ser; quem está empenhado em vir a ser não pode saber o que é ser. A verdade é ser, de momento a momento; e a felicidade que continua, não é felicidade. A felicidade é aquele estado de ser que é atemporal. O estado atemporal só pode vir quando há um descontentamento tremendo — não o descontentamento que se canalizou em certa via, por onde se evade, mas o descontentamento que não tem saída, que não tem qualquer via de fuga, que não está em busca de preenchimento. Só então, nesse estado de supremo descontentamento, pode a realidade manifestar-se. Esta realidade não pode ser comprada, ou vendida, ou repetida. Não pode ser colhida nos livros. Ela tem de ser encontrada a cada momento, no sorriso, na lágrima, debaixo da folha morta, nos pensamentos erradios, na plenitude do amor.
O amor não é diferente da verdade. O amor é aquele estado em que o processo de pensamento, como tempo, se imobilizou completamente. Onde há amor, há transformação. Sem amor, nada significa a revolução, porque a revolução, nesse caso, é simples destruição, decomposição, miséria crescente. Onde há amor, há revolução, porque o amor é transformação, momento por momento.
Krishnamurti, A Primeira e a Última Liberdade
Pergunta:
A maledicência tem valor como meio de auto-revelação, e principalmente como meio de revelar-me outras pessoas. Seriamente falando, por que não aproveitar a maledicência, como meio de descobrir o que é? Não me arrepia a palavra "maledicência”, só porque ela tem sido condenada através dos séculos.
Krishnamurti:
Por que será que gostamos de falar dos outros? Não é porque isso nos revela outras pessoas. E que necessidade há de que os outros nos sejam revelados? Porque desejamos conhecer os outros ? Porquê tanto interesse pelos outros ? Antes de tudo, por que gostamos de falar dos outros? É uma forma de desassossego, não achais? Como a preocupação, é indício de mente inquieta. Porquê esse desejo de intervir nos assuntos alheios, de saber o que os outros estão fazendo ou dizendo? É muito superficial a mente dada a essa bisbilhotice — é a mente indagadora, porém, mal-encaminhada. O interrogante parece pensar que os outros lhe são revelados pelo facto de se preocupar com eles, com os seus actos, seus pensamentos, suas opiniões. Mas conhecemos os outros, se não conhecemos a nós mesmos? Podemos julgar os outros, se não conhecemos o funcionamento do nosso próprio pensar, a maneira como agimos, a maneira como nos comportamos? Porquê este interesse excessivo a respeito de outrem? Não representará realmente uma fuga, esse desejo de saber o que os outros estão a pensar, ou sentindo, e falando? Não nos oferecerá ele um meio de fugirmos a nós mesmos? Não haverá, também aí, o desejo de interferir na vida dos outros? A nossa vida já não é suficientemente difícil, suficientemente complexa, suficientemente dolorosa, sem cuidarmos da vida dos outros, sem interferirmos na vida de outrem? Sobra-nos tempo para pensar nos outros dessa maneira indiscreta, cruel, feia? Por que fazemos isso? Sabeis que todos o fazem. Praticamente todos falam mal de alguém. Porquê? Creio, em primeiro lugar, que falamos dos outros porque não estamos bastante interessados no processo do nosso próprio pensar e do nosso próprio agir. Queremos saber o que os outros estão fazendo, talvez porque, para não o dizermos rudemente, desejamos imitá-los. Em geral, quando tagarelamos a respeito de outras pessoas, é para condená-las, mas convenhamos, caritativamente, que seja para imitá-las. Porque desejamos imitar os outros? Não indicará isso extraordinária superficialidade da nossa parte? Está sobremodo embotada a mente que necessita de estímulo e vai procurá-lo fora de si própria. Em outras palavras, a tagarelice é uma forma de sensação a que gostamos de entregar-nos, não é verdade? Pode ser uma sensação de espécie diferente, mas há sempre esse desejo de estímulo, de distração. Se penetrarmos, de facto, nesta questão, acabaremos por nos encontrar com nós mesmos e, então, veremos como somos superficiais, quando buscamos excitação fora de nós, falando dos outros. Apanhai-vos, na próxima vez que estiverdes tagarelando a respeito de alguém; se tomardes consciência do facto, ele revelará muitas coisas a vosso próprio respeito. Não procureis atenuar o acto, dizendo que apenas sentis curiosidade pelos outros. Ele denota inquietação, um desejo de excitação, denota superficialidade, falta de interesse real e profundo pelas pessoas, o qual nada tem em comum com o mero tagarelar a respeito' delas.
O outro problema é: como acabar com a tagarelice. Esta é a questão imediata, não achais? Ao perceberdes que gostais de falar dos outros, como podeis pôr fim à tagarelice? Se se tornou um hábito, um mau costume, que persiste dia após dia, como pôr-lhe fim? Surgiu esta questão? Se percebeis que estais tagarelando, se ficais consciente disso e de todas as consequências, perguntais então "Como acabarei com isso”? O hábito não se extinguirá por si mesmo, no momento em que estiverdes consciente dele? O "como” não se apresentará mais. Só há "como?” quando não há apercebimento; o hábito de tagarelar denota falta de percebimento. Experimentai-o por vós mesmo na próxima vez que estiverdes tagarelando, e vereis como parais imediatamente de tagarelar, assim que vos tornais consciente do que estais falando, do que a vossa língua está disparando convosco. Não é precisa a intervenção da vontade para detê-la. A única coisa necessária é estar consciente, estar consciente do que dizeis e percebeis o que isso subentende. Não há que condenar ou justificar a tagarelice. Tornai-vos consciente dela, e vereis com que rapidez deixais de tagarelar. Porque esse apercebimento revela os nossos modos de acção, a nossa conduta, o nosso padrão mental. Nesta revelação descobrimos a nós mesmos, o que é muito mais importante do que tagarelar sobre os outros, sobre o que estão fazendo, o que estão pensando, e como estão procedendo.
Quase todos nós, que lemos os jornais, estamos cheios de maledicência, maledicência global. Sem dúvida, são meios de fuga de nós mesmos, da nossa mesquinhez, da nossa fealdade. Pensamos que, graças a um superficial interesse nos acontecimentos mundiais, nos tornamos cada vez mais sensatos, cada vez mais capazes de cuidar das nossas vidas. Tudo isso, por certo, são maneiras de fugirmos de nós mesmos. Somos tão vazios, tão superficiais, em nós mesmos, e temos tanto medo de nós mesmos! Somos tão pobres interíormente, que a tagarelice tem o efeito de preciosa distração, uma fuga de nós mesmos. Procuramos preencher o nosso vazio com ritos, com conhecimentos, com tagarelices, com reuniões partidárias, enfim, recorrendo a numerosos meios de fuga, e esses meios de fuga se tornam importantíssimos, e não a compreensão do que é. A compreensão do que é exige atenção; sabermos que somos vazios, que sofremos, requer imensa atenção e não fuga. Em geral, porém, gostamos dessas fugas, porque são muito mais aprazíveis, mais agradáveis. Também, quando conhecemos exatamente como somos, torna-se muito difícil fazer alguma coisa em relação a nós mesmos. Este é um dos problemas que temos de encarar. Não sabemos o que fazer. Quando sei que estou vazio, que sofro, não sei o que fazer, não sei como proceder a esse respeito. É por isso que recorremos às fugas de todo o género.
A questão é: que fazer? É claro, naturalmente, que não se pode fugir, porque isso é extremamente absurdo e infantil. Mas quando vos vedes em presença de vós mesmos, quando vos vedes exactamente como sois, que deveis fazer? Primeiro, é possível não rejeitar ou justificar o que sois, mas, simplesmente, ficar com o facto — o que sois? É difícil, porquanto a mente procura explicação, condenação, identificação. Se ela não faz nada disso e permanece tranquila, está então apta a aceitar os factos. Se aceito a minha cor escura, está encerrado o caso; mas, se desejo tornar-me mais claro, surge então o problema. Aceitar o que é, é dificílimo. Só é possível quando não há fuga, e a condenação ou a justificação constitui uma forma de fuga. Por conseguinte, ao compreendermos na sua inteireza o processo que nos faz tagarelar, e compreendermos como é absurdo, como é cruel, e tudo o que ele implica, ficamos então com o que somos; porém costumamos aproximar-nos do que somos com a intenção de destruí-lo ou de transformá-lo em outra coisa. Se, ao contrário, nos abeiramos do facto com a intenção de compreendê-lo, de ficar com ele, completamente, veremos que ele não é mais a coisa de que tínhamos medo. Há então a possibilidade de transformar o que é.
Krishnamurti, A Primeira e a Última Liberdade
(...) Tende a bondade de experimentar. Primeiro, temos de estar perturbados; e é bem evidente que a maioria de nós não gosta de ser perturbada. Pensamos ter encontrado um padrão de vida — o Mestre, a crença, o que quer que seja — e nele nos instalamos. É como ocupar um bom cargo burocrático e nele ficar o resto da vida. Com a mesma mentalidade queremos lidar com certas qualidades de que desejamos livrar-nos. Não percebemos a importância de sermos perturbados, de estarmos inseguros interiormente, de não sermos dependentes. Por certo, só na insegurança se pode descobrir, se pode ver, se pode compreender. Queremos viver como um homem endinheirado: folgadamente; ele não será perturbado, não quer ser perturbado.
A perturbação é essencial à compreensão, e toda a tentativa de encontrar a segurança constitui um obstáculo à compreensão. Quando queremos livrar-nos de uma coisa que nos perturba, criamos um obstáculo. Se pudermos experimentar um sentimento directamente, sem lhe dar nome, creio que descobriremos nele muita coisa. Então não há mais batalha com esse sentimento, porque o experimentador e a coisa experimentada são um só, o que é essencial. Enquanto o experimentador verbalizar o sentimento, a experiência, estar-se-á a separar dela, para atuar sobre ela; tal ação é artificial, ilusória. Mas, se não há verbalização, o experimentador e a coisa experimentada são uma só coisa. Essa integração é necessária, e tem de ser encarada radicalmente.
Krishnamurti, A Primeira e a Última Liberdade
Pergunta:
Não tenho interesse por coisa alguma, mas a maioria das pessoas está sempre ocupada em numerosos interesses. Não preciso trabalhar, portanto não trabalho. Devo empreender algum trabalho útil?
Krishnamurti:
Tornar-vos um obreiro social, ou um obreiro político, ou um obreiro religioso — não é isso? Como não tendes mais o que fazer, vos tornais reformador! Se nada tendes que fazer, se estais enfadado, porque não ficais enfadado? Porque não ficar assim? Se sentis tristeza, ficai triste. Não procureis uma saída, porque o facto de estardes enfadado tem imensa significação, se fordes capaz de o compreender, de viver com ele. Se dizeis: "Sinto tédio, e, por isso, farei qualquer outra coisa”, estais apenas procurando fugir ao tédio e, como a maioria das nossas actividades são fugas, causais muito mais malefício, socialmente e a todos os outros respeitos. É muito maior o malefício, quando fugis ao facto, do que quando permaneceis com ele. A dificuldade consiste em como permanecer com o facto, sem fugir dele. Visto que a maioria das nossas actividades constituem um processo de fuga, é dificílimo desistirmos de fugir e encararmos o facto. Por conseguinte, folgo muito em saber que vos sentis verdadeiramente enfadado, e digo--vos: "Alto! Fiquemos aqui; vamos ver o que é isto. Por que fazer alguma coisa?
Se estais enfadado, por que estais enfadado? Que coisa é essa que se chama tédio? Porque não tendes interesse por coisa alguma? Há-de haver razões e causas que vos embotaram: sofrimentos, fugas, crenças, actividades incessantes vos embotaram a mente e tornaram inflexível o vosso coração. Se pudésseis descobrir porque tendes tédio, porque não sentis interesse por coisa alguma, então, por certo, resolverieis o problema, não é verdade? O interesse, despertado, passaria a funcionar. Se não vos interessa saber a razão por que estais enfadado, não podeis forçar-vos a sentir interesse por uma actividade, só para fazer alguma coisa, como um esquilo que dá voltas na gaiola. Sei que é esta a espécie de actividade a que se entrega a maioria de nós. Mas podemos descobrir, interiormente, psicologicamente, a razão por que nos achamos neste estado extremo de tédio; pode-se ver por que a maioria de nós se acha neste estado: estamos esgotados, emocional e mentalmente; temos tentado tantas coisas, tantas sensações, tantos divertimentos, tantas experiências, que nos tornamos embotados, cansados. Aderimos a um grupo, fazemos tudo o que se nos prescreve, e depois o deixamos; passamos a outra coisa, para experimentar. Se não obtemos resultados com um psicólogo, procuramos outra pessoa ou um sacerdote e, se de novo somos mal sucedidos, passamos a outro instrutor, e assim por diante; estamos sempre em movimento. Esse processo de constante tensão e relaxamento é exaustivo, não achais? Como todas as sensações, não tarda a embotar a mente.
Temos feito isso, passado de sensação para sensação, de excitação para excitação, até chegarmos a um ponto em que nos vemos verdadeiramente exaustos. Agora, percebendo isso, não empreendais mais nada; descansai! ficai quieto! Deixai a mente ganhar forças por si mesma; não a forceis. Assim como o solo se renova durante o inverno, assim também, quando deixamos a mente em repouso, ela se renova. É muito difícil, porém, deixar a mente em repouso, dar-lhe folga, depois de tudo isso, porque a mente quer estar sempre a fazer alguma coisa. Quando atingis o ponto em que realmente vos permitis ser exactamente como sois — enfadado, feio, repelente, ou o que for — então há possibilidade de fazer alguma coisa em relação ao facto.
Que acontece quando aceitais uma coisa, quando aceitais aquilo que sois realmente? Quando admitis que sois o que sois, onde está o problema? Só há problema quando não aceitamos uma coisa tal como é e desejamos transformá-la — o que não significa que eu esteja advogando a resignação, a conformidade. Ao contrário, se aceitamos o que somos, vemos então que a coisa que nos fazia medo, a coisa a que chamávamos tédio, a coisa a que chamávamos desespero, a coisa a que chamávamos medo, passou por completa transformação. Há uma transformação completa da coisa que temíamos.
Eis por que é importante, como disse, que compreendamos o processo, as maneiras do nosso pensar. O autoconhecimento não pode ser aprendido de outra pessoa, aprendido de um livro, de um credo, de uma psicologia, ou de um psicanalista. Ele tem de ser achado por vós mesmos, porque ele é a vossa vida. Não ampliando e aprofundando esse conhecimento do "eu”, podeis fazer o que quiserdes, alterar quaisquer circunstâncias ou influências exteriores ou interiores — haverá sempre o campo de cultura do desespero, da dor e do sofrimento. Para transcender as actividades egocêntricas da mente, deveis compreendê-las. E compreendê-las é estar consciente da acção nas relações, nas relações com coisas, com pessoas e com ideias. Nessas relações, que são o espelho, começamos a ver-nos a nós mesmos, sem nenhuma justificação ou censura, e, desse conhecimento mais amplo e mais profundo das tendências da nossa mente, podemos avançar mais além, sendo então possível estar a mente quieta, receber o real.
Krishnamurti, A Primeira e a Última Liberdade