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27 de Agosto

30.07.21

(...)

Ao atravessarmos a ponte, no meio do bosque banhado pelo sol, a meditação adquiria um novo significado. Um silêncio espontâneo vinha da ausência de desejo, busca ou lamentos do cérebro; os passarinhos cantavam, os esquilos subiam correndo pelas árvores, a brisa agitava as folhas e o silêncio existia. O pequeno córrego, que vinha de longe, transbordava de alegria, sem abandonar o seu profundo silêncio interior. Infinita e ilimitada imobilidade, que brotava da mente total. Não se tratava de um silêncio produzido pelo pensamento limitado e estreito, e, portanto, aceite como tal. Silêncio que não era fruto da experiência, para ser reconhecido e acumulado, pois não tinha fronteiras nem controle. Poderia desaparecer para nunca mais ressurgir, mas, ainda que reaparecesse, seria sempre diferente. O silêncio é sempre novo; o cérebro é capaz de repetir o passado, através da memória e da recordação, mas o passado não faz parte do presente. A meditação é a ausência da consciência, resultado do tempo e do espaço. O pensamento, cerne da consciência, não pode de maneira nenhuma provocar este silêncio; deve ser espontâneo o findar do intrincado e subtil mecanismo cerebral, sem depender de nenhuma recompensa ou garantia. É a única maneira de o cérebro permanecer sensível, vital e sereno. Faz parte da meditação a compreensão, pelo cérebro, das suas actividades superficiais e ocultas; nisto consiste a base da meditação, sem o que se torna uma actividade vazia de significado, conducente à auto-ilusão e à auto-hipnose. O silêncio é essencial para que ocorra a explosão da criação.

A maturidade não vem com o tempo nem com a idade. Não existe um intervalo entre o presente e o amadurecimento; esse intervalo não existe mesmo. A maturidade é aquele estado no qual cessou toda a forma de escolha; só os imaturos escolhem e conhecem o conflito nascido da escolha. Na maturidade não existe uma direcção qualquer, mas, sim, aquela que não vem da escolha. Qualquer espécie de conflito revela imaturidade. Não existe o amadurecimento psicológico, a não ser o inevitável processo orgânico de crescimento. Maturidade é a compreensão, que transcende todo e qualquer conflito. Por mais complexo ou subtil que possa parecer o conflito, tanto interior como exterior, ele é passível de compreensão. O conflito, a frustração e o preenchimento formam um só movimento, tanto interior quanto exterior. É como a maré que vai e vem, mas que em si mesma é apenas um movimento. O conflito deve ser compreendido na sua inteireza, não apenas intelectualmente, mas no contacto vivo e real com a sua essência. Esse contacto emocional e directo com o conflito, a crise, deixa de ocorrer se nos limitarmos a aceitá-lo, intelectualmente, como necessário, ou a negá-lo de forma sentimental. A aceitação ou a rejeição não alteram o facto e nem mesmo o raciocínio será capaz de provocar a crise necessária. Isso só vem com a percepção do facto. Esta percepção não ocorre se houver condenação, justificação ou identificação com o facto. Ela só se torna possível quando o cérebro cessa a sua actividade, limitando-se a observar, abstendo-se do acto de classificar, julgar ou avaliar. Existirá, necessariamente, o conflito enquanto houver a ânsia de preenchimento, com a sua inevitável série de frustrações; existirá o conflito enquanto existir a ambição, com o seu velado e implacável espírito de competição; e a inveja faz parte desse interminável conflito, gerado pelo desejo de vir-a-ser, de obter ou de alcançar o bom êxito.

A compreensão independe do tempo. A compreensão está sempre no presente, nunca no amanhã; é agora ou nunca; o que existe é o presente. O “ver” (perceber) é instantâneo; cessando no cérebro o conceito do acto de “ver” e compreender, ele é imediato. Esse “ver” é explosivo, isento de cálculo ou raciocínio. Na maioria das vezes, é o medo que impede a compreensão. O medo, com as suas defesas e sua coragem, é a origem do conflito. O “ver” não apenas vem do cérebro, mas também o transcende. A percepção do facto cria a sua própria acção, completamente diferente da acção baseada na ideia ou no pensamento; a acção emanada da ideia ou do pensamento gera conflito; a acção que visa ajustar-se à ideia, ao modelo, gera conflito. No campo do pensamento, todo o conflito é interminável.

Krishnamurti, Diário de Krishnamurti

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25 de Agosto

25.07.21

(...)

A meditação não é uma busca; nem sondagem ou pesquisa. É uma explosão e um descobrimento. Não é o domínio, nem o ajustamento do cérebro, nem tampouco análise introspectiva; não é por certo a prática de concentração, que acumula, escolhe e nega. A meditação é uma coisa que vem naturalmente ao compreendermos e logo abandonarmos as afirmações e realizações positivas ou negativas. Significa o completo esvaziamento do cérebro. O importante é esse esvaziamento e não o que se encontra no vazio; só se pode ver e perceber esse vazio; brota daí toda a virtude — não a moralidade e a respeitabilidade sociais. E desse vazio vem o amor; do contrário, não é amor. A base da virtude reside nesse vazio. É ele o princípio e o fim de todas as coisas.

(...)

Krishnamurti, Diário de Krishnamurti

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24 de Agosto

23.07.21

(...)

Manhã esplêndida; sol por toda a parte; a brisa a agitar a folhagem; tempo excelente para um passeio de carro, não muito demorado, mas que desse para se apreciar a beleza terrena. Manhã renovada pela morte,
não aquela produzida pela decadência, pela doença ou por um acidente, mas a morte que destrói dando lugar à criação. Nada se cria, enquanto a morte não varrer todas as coisas que o cérebro acumula para salvaguardar uma existência egocêntrica. Antes, a morte era uma nova forma de continuidade; estava associada às coisas que continuam. Com a morte, veio uma nova existência, uma nova experiência, um novo sopro de vida. O que era velho cessou e nasceu o novo, que, por sua vez, deu lugar a um outro novo. A morte era o meio de se chegar ao novo estado, à nova invenção, a uma nova maneira de viver, a um novo pensar. Fora uma mudança aterradora, porém essa própria mudança trouxe uma nova esperança.

Agora, todavia, a morte não trouxe nada de novo, um diferente horizonte, um outro alento. É a morte absoluta e final. E, então, nada existe, nem passado nem futuro. Nada. Coisa alguma está a nascer. Contudo, não existe desespero ou busca; é a morte completa, livre do tempo; a morte que contempla do profundo vazio do nada. É a morte  sem o velho e sem o novo. Despojada do sorriso ou da lágrima. Não é uma máscara a cobrir, a esconder alguma realidade. A realidade é a morte, e não é necessário ocultá-la. A morte tudo apagou, sem nada deixar. Este nada é a dança da folha, o grito da criança. Não é coisa nenhuma, e assim deve ser. O que continua exprime decadência, automatismo, hábito, ambição. Existe a corrupção, mas não a morte. A morte é o nada absoluto. Ela deve estar presente, porque é dela que desabrocha a vida, o amor. A criação existe neste vazio. Sem a morte total, não há criação.

Líamos algo, casualmente, e comentávamos sobre a situação do mundo, quando, de súbito, manifestou-se aquela bênção, inundando o quarto, como agora acontece frequentemente. Íamos começar a comer, quando ela penetrou pela porta aberta da saleta. De facto, podíamos senti-la, fisicamente, qual uma onda a invadir o quarto. Tratava-se de uma intensa e crescente energia, extraordinariamente forte e imóvel, de poder destruidor. As palavras não são a coisa, e a realidade é verbalmente inexprimível; ela deve ser vista, ouvida e vivida; o seu significado é, então, completamente diferente.

Krishnamurti, Diário de Krishnamurti

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23 de Agosto

23.07.21

(...) 

Meditação é a atenção em que existe um estado de consciência, sem escolha, do movimento de todas as coisas — o grasnido dos corvos, o serrote elétrico cortando a madeira, a agitação das folhas, o riacho barulhento, o menino gritando, os sentimentos, os motivos, os contraditórios pensamentos e, indo mais para o fundo, a percepção da consciência total. Nesta atenção deixa de existir o tempo, como o dia de ontem, que tem continuidade no dia de amanhã, e as distorções e movimentos da consciência aquietam-se e se silenciam. Neste silêncio, há um imenso e incomparável movimento; movimento imperceptível, que constitui a essência do sagrado, da morte e da vida. Impossível é segui-lo, pois não deixa vestígio algum e é estático e silencioso; ele é a essência de todo o movimento.

(...) Sem nada dizermos, instintivamente parámos o carro, recuámos e voltámos em direção à luz e às colinas. Espectáculo incrivelmente belo e, ao penetrar a estrada no amplo vale, o coração mantinha-se imóvel, tão imóvel e tão aberto quanto o extenso vale, totalmente abalado. Por ali havíamos passado muitas vezes; o contorno das colinas era-nos familiar; reconhecíamos as campinas, as casas de campo, e lá estava o habitual murmúrio do riacho. Nada mudara,' excepto o cérebro, apesar de estarmos a conduzir  o carro. Tudo, porém, se intensificara - a morte estava presente. Não porque o cérebro estivesse quieto, nem por causa da beleza da terra, ou da luz nas nuvens, ou mesmo da estática nobreza das montanhas; não era nada disso, embora tais coisas pudessem ter contribuído para aquilo; tratava-se indiscutivelmente da morte; de repente, tudo chegava ao fim; não havia continuidade; o cérebro limitava-se a comandar o corpo na direcção do carro. Nada mais existia. O carro continuou durante algum tempo e parou. Havia vida e morte, próximas, íntimas, inseparáveis e nenhuma tinha importância. Algo de devastador havia acontecido.

Não era fruto da imaginação, nem uma ilusão; a coisa era tão séria que não admitia tamanha distorção; não se tratava de uma brincadeira. A morte não é uma coisa superficial ou passageira; não se pode argumentar com a morte. Podemos discutir interminavelmente com a vida, mas não com a morte. Ela é definitiva e absoluta. Não se tratava da morte do corpo; isso seria um acontecimento bem simples e decisivo. Viver com a morte é uma outra coisa. Havia vida e havia morte; ambas presentes, inexoravelmente unidas. Não era a morte psicológica; nem um choque que banisse todo o pensar, todo o sentimento; nem mesmo uma súbita perturbação do cérebro, ou uma doença mental. Não era nada disso, nem tampouco uma insólita decisão de um cérebro em desespero ou exausto. Não significava um desejo inconsciente de morrer. Nada disso — o que constitui imaturidade e negligência. Era algo de uma diferente dimensão; algo de indescritível dentro do plano do conhecido.

Ali estava a essência da morte. A essência do ser é a morte, que encerra também a essência da vida. De facto, não estavam separadas — a vida e a morte. Não se tratava de algo concebido pelo cérebro para seu conforto e segurança. O próprio viver era morrer, e morrer era viver. No carro, com aquela beleza e colorido em volta, e “sentindo” aquele êxtase, a morte fazia parte do amor e de todas as coisas. Não era um símbolo, uma ideia, algo conhecido. Ali estava efectivamente, tão persistente e imperiosa como a buzina de um carro exigindo passagem. Assim como a vida nunca se ausentaria nem poderia ser posta de lado, assim também a morte, agora, não se ausentaria jamais, nem tampouco seria ignorada. Ela estava ali, com extraordinária intensidade e determinação.

Passámos a noite toda em presença da morte; parecia ter-se apossado do cérebro e das atividades habituais; havia ainda algumas e poucas actividades cerebrais, mas sem suscitarem muito interesse. Sempre existiu esta indiferença, mas, agora, ela superava qualquer explicação. Tudo se tornara mais intenso, tanto a vida como a morte.

Ao acordarmos, a morte estava presente, sem sofrimento, porém vital. Manhã maravilhosa. E sentia-se aquela bênção que deleitava também as montanhas e as árvores.

Krishnamurti, Diário de Krishnamurti

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22 de Agosto

23.07.21

(...)

O ar estava impregnado daquela insuportável imensidão, intensa e insistente. Não se tratava de fantasia da imaginação; a imaginação retrai-se perante a realidade; a imaginação é perigosa, não tem valor; só o facto prevalece. A fantasia e a imaginação dão prazer e decepcionam e, por isso, devem ser banidas da mente. Importa compreender o mito, a fantasia e a imaginação, pois, no próprio acto de compreender, eles se dissolvem. Aquela realidade persistia, findando o que de início era meditação. De que vale a meditação perante a realidade! Não foi a meditação que lhe dera existência; nada pode provocá-la. Porém lá estava, apesar da meditação, mas, para isso, era necessário um cérebro altamente sensível e atento, no qual tivesse cessado, espontaneamente, a habitual tagarelice sobre o certo e o errado. Ele aquietara-se, vendo e ouvindo, sem interpretar ou classificar; e não havia entidade desejando ou produzindo aquela tranquilidade. O cérebro achava-se tranquilo e atento. A imensidão inundava a noite; e o êxtase existia.

O cérebro não tinha relação com coisa alguma; não tentava moldar, mudar, impor, nem exercia influência e, no entanto, era implacável. Não pretendia fazer o bem, nem reformar; não visava à respeitabilidade e, portanto, tinha o poder da destruição. Porém, havia amor, não o amor torturante, cultivado pela sociedade. Era a essência do movimento vital. Ali estava, inexorável, demolidor, com a ternura das coisas novas, como as folhas da primavera, que tão bem conhecem esse estado. A criação vem dessa força e energia descomunais. Todas as coisas permaneciam serenas.

(...)

A palavra “sentir” é ilusória; significa mais do que urna emoção, um sentimento, uma experiência, o tacto ou o olfato. Apesar de enganosa, ela é necessária na comunicação, especialmente quando se fala da essência. Não sentimos a essência através do cérebro, nem através da fantasia; não é tão real como um choque; e, acima de tudo, não é a palavra. É impossível experimentá-la, porque, para tanto, faz-se necessário um experimentador, o observador. Experimentar sem o experimentador é algo completamente
diferente. É nesse “estado”, livre do experimentador, do observador, que surge esse “sentimento”. Não se trata de intuição, em que o observador interpreta ou obedece, de modo racional ou cego. Também não é desejo, ânsia, transformada em intuição ou na “voz de Deus” , evocada pelos políticos e reformadores sócio-religiosos. Cumpre abandonar de vez tudo isto, que impede a compreensão desse sentimento, dessa percepção, desse estado de atenção. “Sentir” exige o rigor da lucidez, isenta de confusão e de conflito. Só se pode “sentir” a essência das coias quando há humildade para investigar até ao fim, sem desvios, o sofrimento, a inveja, o medo e a ambição. O cérebro não possui esta humildade; o intelecto é um fragmento. Esta investigação requer a mais elevada forma de simplicidade, não aquela de vestir a roupa do mendigo ou de fazer uma única refeição por dia. Sentir a essência é negar o pensamento e as suas aptidões mecânicas — o conhecimento e o raciocínio. Estes são necessários para resolver problemas mecânicos; e são mecânicos todos os problemas do pensar e do sentir. Na busca da essência das coisas releva negar o mecanismo da memória, cuja reacção é o pensamento. Destruir para alcançar o objectivo verdadeiro; não se trata de destruição de objectos do mundo exterior, porém dos refúgios psicológicos, das resistências, dos deuses e seus secretos esconderijos. Sem isso, não se investigam esses enigmas profundos, que significam, fundamentalmente, amor, criação e morte.

(...)

Krishnamurti, Diário de Krishnamurti

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21 de Agosto

22.07.21

(...)

O que é profundo não tem fim; o atemporal é a sua essência. Não podemos experimentá-lo; a experiência é coisa sem valor, algo que se perde ou ganha com a maior facilidade; o pensamento não pode concebê-lo, nem o sentimento é capaz de apreendê-lo. Estas são coisas tolas e imaturas. A maturidade não resulta do tempo, nem é questão de idade ou o produto de influências ou do ambiente. Não se pode comprá-la; nem os livros, nem os instrutores ou redentores, individualmente ou em conjunto, poderão engendrá-la. A maturidade não é um fim em si mesma; ela se realiza sem que o pensamento a cultive; ela surge, chega misteriosamente, sem meditação, imprevistamente. É imprescindível haver maturidade, esse amadurecimento na vida; não a que resulta da doença e do tormento, ou da dor e da esperança. O desespero e o esforço não trazem esta total maturidade; é preciso que ela venha naturalmente, sem a buscarmos.

Nesta total maturidade existe austeridade. Não a austeridade da penitência ou do hábito religioso, mas a displicente e espontânea indiferença para com as coisas mundanas, perante as suas virtudes, os seus deuses, a sua respeitabilidade, as suas esperanças e valores. Cumpre negar tudo isto para que desponte a austeridade contida no estar “só”. Nem a sociedade nem a cultura podem influir nesta solidão. Mas ela deve existir, não concebida pelo cérebro, esse produto do tempo e das influências. Tem de surgir como um raio, sem se saber de onde vem. Sem a austeridade, é impossível haver plena maturidade. O isolamento — que é a essência da autocompaixão, da autodefesa, da vida reclusa baseada no mito, no conhecimento e na ideia - nada têm de comum com o estar “só” ; no isolamento, busca-se incessantemente a integração, porém mantendo-se a divisão. Estar só é viver livre de qualquer influência. E é esta solidão que é a essência da austeridade.

Ela surge quando o cérebro funciona com clareza, não danificado por traumas psicológicos, causados pelo medo; todo e qualquer conflito destrói a sensibilidade do cérebro; a ambição, com a sua crueldade, com o seu incessante esforço para vir a ser, provoca o desgaste do subtil mecanismo cerebral; a avidez e a inveja embotam e desgastam o cérebro através do prazer e da frustração. É essencial uma vigilância sem opção, uma percepção isenta da ideia de receber ou de ajustamento. Comer em excesso ou comprazer-se em alguma coisa embota o corpo e insensibiliza o cérebro.

Na beira da estrada havia uma flor, clara, radiosa, aberta para o céu; o sol, as chuvas, a escuridão da noite, os ventos, a trovoada e a terra contribuíram para formá-la. Mas a flor não é nenhuma dessas coisas. Ela exprime a síntese de todas as flores. A libertação da autoridade, da inveja, do medo, da solidão, não suscita o estar só, com sua extraordinária austeridade. Ele vem quando o cérebro não o está buscando; vem quando nem sequer olhamos na sua direção. Aí, então,, nada lhe será adicionado ou subtraído. Terá então vida própria, um movimento que é a essência da vida total, sem tempo ou espaço.

E sobreveio aquela bênção, e uma paz imensa. 

(...)

Krishnamurti, Diário de Krishnamurti

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20 de Agosto

22.07.21

Quanta perfeição naquele dia intensamente azul, em que tudo reluzia ao sol matinal! Algumas nuvens pairavam dispersas, sem destino, sem rumo. O sol sobre as irrequietas folhas da faia era como jóias brilhantes contra os declives das verdes elevações. As campinas haviam mudado durante a noite; mais intensas, mais macias, de um verde incomum. Bem no alto da colina havia três vacas a pastar preguiçosamente; seus guizos soavam no límpido ar da manhã; movimentavam-se em fila, mastigando com firmeza, enquanto cruzavam a campina. A cabine aérea de esquiadores passou por cima delas, sem incomodá-las. Era uma linda manhã e as montanhas cobertas de neve erguiam-se pontiagudas contra um céu tão claro a ponto de se tornarem visíveis as várias e pequenas cascatas. Manhã de sombras alongadas, de infinita beleza. É estranho como o amor era a essência dessa beleza. Havia tal delicadeza no cenário, que tudo parecia aquietar-se, temendo que algum movimento pudesse despertar uma sombra oculta. E existiam algumas nuvens.

Foi um agradável passeio de carro, que se diria deleitar-se com a sua própria função; fazia as curvas com facilidade, mesmo as mais difíceis, suportando bem a subida da encosta, com extraordinário desempenho e potência em qualquer situação. Parecia um animal conhecedor da sua força. A estrada cheia de curvas serpenteava por denso bosque banhado de sol, onde os pontos luminosos vibravam e dançavam com as folhas; a cada curva da estrada, era mais intensa a luz, o movimento e o êxtase. Cada árvore, cada folha, mantinha-se solitária, viva e silenciosa. Por uma estreita abertura entre as árvores divisamos uma clareira cujo verde brilhava ao sol. Fascinava-nos tanto aquele espetáculo que chegávamos a esquecer-nos dos perigos da estrada serrana. Logo, a estrada se amenizava e seguia em direção a outro vale. As nuvens movimentavam-se agora, protegendo-nos do sol intenso. A estrada se aplainara, se é que um caminho montanhoso pode ser plano; ela enveredava por uma colina coberta de escuros pinheiros, deparando com gigantescas montanhas, rochas e neve, com verdes campos e cascatas, com casebres de madeira e com as sinuosas curvas da serra. Era difícil acreditar no que viam os olhos — a esmagadora imponência daquelas rochas bem modeladas, as montanhas nuas, cobertas de neve, e uma infindável cadeia de penhascos, cercada de verdes campinas, tudo como que unido no vasto amplexo da montanha. Realmente inacreditável; havia ali beleza, amor, destruição e a grandeza da criação, não apenas aqueles rochedos, nem os verdes campos, nem tampouco as pequenas cabanas; não é que aquilo participasse do cenário, mas era algo realmente transcendente. Aquilo simplesmente existia,
majestoso e belo, cujo esplendor superava qualquer expectativa; sua presença era tão definitiva e imóvel que o cérebro com seus pensamentos significava tanto quanto aquelas folhas mortas, caídas no bosque. Tamanha era a sua intensidade e força que o mundo, as árvores e a terra cessavam de existir. Era amor, criação e destruição. Nada mais existia. 

Sentia-se a essência das coisas profundas. A essência do pensamento é aquele estado em que não existe pensar. Por mais amplo e profundo que seja o alcance do pensamento, ele jamais deixará de ser frívolo e superficial. Surge aquela essência com o findar do pensamento. Esse findar é a própria negação, e negar não admite o caminho positivo: não existe um método ou sistema capaz de eliminar o pensamento. O método, o sistema é uma maneira positiva de negar, tornando-se, assim, o pensamento incapaz de encontrar a sua própria essência. Para descobri-la o pensamento tem de cessar. A essência do ser é o não-ser, e para “ver” a totalidade do não-ser, deve o homem libertar-se do desejo do vir-a-ser. Não há liberdade se existe a continuidade, pois tudo aquilo que continua é limitado pelo tempo. Toda aexperiência aprisiona o pensamento ao tempo, e a mente livre do desejo de experimentar percebe a sua própria essência. Este estado psicológico que cessa de buscar a experiência não significa paralisia mental; ao contrário, é a mente aditiva, acumulativa, que começa a definhar. Acumular é um acto mecânico, repetitivo; tanto a renúncia quanto a mera aquisição são actos mecânicos de imitação. Torna-se livre a mente que destrói este mecanismo de acumulação e defesa; desta maneira, ela se faz indiferente ao acto de experimentar.

Então, o que existe é o facto e não a experiência do facto; a opinião sobre o facto, a sua avaliação, considerá-lo belo ou não, é experimentar o facto. E isto significa negá-lo, fugir-lhe. Porém experimentar um facto, sem a interferência de qualquer pensamento ou sentimento, é um fenómeno profundo e grave.

Despertámos esta manhã com aquela estranha imobilidade do corpo e do cérebro; assim, penetramos em insondáveis e profundas regiões de fervor e êxtase que revelavam aquela extraordinária bênção.

0 processo continua brandamente.

Krishnamurti, Diário de Krishnamurti

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19 de Agosto

21.07.21

(...)

As sombras são mais vivas do que a realidade; mais longas, mais profundas e ricas; parecem ter vida própria, independente e protectora; mostram-se sempre acolhedoras. O símbolo torna-se mais importante do que a realidade; proporciona segurança; é fácil encontrar conforto no seu abrigo. Não importa o que se faça, ele jamais contradiz, nem se altera; tanto faz coroá-lo ou cobri-lo de cinzas. Extraímos enorme satisfação de coisas mortas, de um quadro, de uma conclusão, de uma palavra. Apesar de estarem mortos exalam perfumes que nos dão imenso prazer. O cérebro é sempre o dia de ontem, e o presente é a sombra do dia anterior, que se prolonga até o dia seguinte, um tanto alterada, mas conservando o ranço do passado. Portanto, o cérebro vive envolto em sombras, o que é mais seguro e confortador.

A consciência está sempre recebendo, acumulando, interpretando o que armazena; ela não pára de absorver por todos os poros; de acumular, de experimentar o que colheu, de julgar, compilar, modificar. Ela não só vê com os olhos, com o cérebro, mas também com todo esse manancial de informações e conhecimentos. A consciência faz do acto de receber a própria razão da sua existência. Guarda, nos seus íntimos e ocultos recessos, tudo aquilo que absorveu ao longo dos séculos — os instintos, as memórias, as defesas — sempre acumulando, ou rejeitando, com o intuito de acumular mais. Ao voltar-se para o mundo exterior, ela o faz para avaliar, comparar ou receber. E, dirigindo-se ao interior, fá-lo com aquela mesma visão exterior, que pesa, que compara e recebe; o despojamento interior não deixa de ser uma forma de acumular. E não tem fim esse processo limitado pelo tempo, em que há um misto de dor, de fugaz alegria e sofrimento.

Mas, observar, ver e escutar sem a interferência desta consciência uma acção que não visa receber — faz parte do movimento global da liberdade. Esta acção não tem um ponto de partida, e, portanto, age em todas as direcções, sem a barreira do tempo-espaço. É completo o seu acto de escutar e de ver. Disso nasce a atenção. A atenção abrange todas as distrações. Só na concentração há o conflito criado pela distração. Expresso ou não, verbalizado ou buscando uma expressão, o pensamento é a totalidade da consciência; o eterno binómio pensamento-sentimento e vice-versa. 0 pensamento nunca está quieto; a reacção que se exprime nas formas de pensamento, intensifica o processo da reacção. A beleza é a sensação expressa pelo pensar. O amor, igualmente, pertence ao campo do pensamento. E existirá amor e beleza dentro dos limites do pensamento? Haverá beleza enquanto o pensamento funciona? A beleza, o amor que ele conhece é o oposto da feiura e do ódio. Mas, a beleza, tal como o amor, não tem oposto.

Ver sem a interferência do pensamento ou da palavra, sem a reacção da memória, difere totalmente do “ver” baseado no pensamento e na sensação. É superficial o que se vê com o pensamento. Ver sem o pensar é visão integral. Contemplar uma nuvem sobre a montanha, sem o pensamento e suas reacções, é o milagre do “novo”; e isto não exprime beleza, porém é imensamente explosivo; um fenómeno único, que jamais existiu e que jamais se repetirá. Para ver e ouvir, a consciência deve aquietar-se, condição essencial para a avassaladora criação. Isto é a totalidade da vida, não o fragmento do pensamento. Não existe beleza, mas simplesmente uma nuvem sobre a montanha; e é isto criação.

Extasiava a beleza dos picos da serra, iluminados pelo ocaso, diante daquela terra tão imóvel. Só a cor existia, não diferentes coloridos; só existia o acto de escutar, não uma variedade de sons.

Ao acordarmos tarde, esta manhã, quando o sol acossava os montes, notámos aquela abençoada presença, que, como uma brilhante luz, parecia conter força e energia próprias. Assim como o murmúrio de águas distantes, percebia-se uma intensa actividade, não do cérebro, com seus desejos e frustrações, mas da própria paixão.

(...)

Krishnamurti, Diário de Krishnamurti

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17 de Agosto

20.07.21

(...)

Foi só ao acordarmos, bem cedo na manhã seguinte, que nos cientificámos do esplendor da noite anterior e do amor que ela suscitou. A consciência não pode conter a imensidão da inocência; está apta a recebê-la, mas não pode buscá-la nem cultivá-la. A totalidade da consciência tem de aquietar-se, cessando todo o desejo e busca. Aquilo que não tem começo nem fim surge quando a consciência se silencia. Meditar é esvaziar a consciência, não com o intuito de receber, mas para despojar-se de toda a finalidade. É preciso haver espaço para o silêncio, não o espaço criado pelo pensamento e suas atividades, mas aquele que vem através da negação e da destruição, quando nada mais resta do pensamento e de suas projeções. Só no vazio ocorre a criação.

Ao acordarmos cedo, esta manhã, a beleza daquela força, com sua inocência, alojada no fundo do nosso ser, emergia à superfície da mente. Sua infinita flexibilidade a tornava imune a qualquer tentativa de moldá-la; não se ajustaria nem se conformaria ao padrão imposto pelo homem. Não seria aprisionada por símbolos ou palavras. Mas, ali estava, imensa, intocável. Qualquer meditação parecia, então, fútil e tola. Só ela estava presente, e a mente tranquila.

Várias vezes durante o dia, de modo imprevisível, aquela bênção surgia e se desvanecia, tornando inúteis desejos e súplicas.

Krishnamurti, Diário de Krishnamurti

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16 de Agosto

20.07.21

(...)

No instante em que descansávamos no sofá, contemplando o movimento das nuvens, surgiu, de repente, aquela bênção pura e inocente. Inundou completamente a sala e o coração; de peculiar e penetrante intensidade, sua beleza derramava-se sobre a terra. O sol refletia-se numa faixa de campo verde-cintilante, e os escuros pinheiros mantinham-se silenciosos e indiferentes.

Esta manhã, ainda bem cedo, poucas horas antes de o dia raiar, ao acordarmos insones, sentimos incontrolável alegria; não havia causa, nenhum sentimentalismo, nem exagero emocional, ou mesmo qualquer entusiasmo que a ocasionasse. Era uma alegria pura, simples, imaculada, e rica, de todo inocente. Não havia pensamento ou motivos por trás dela, nem podíamos compreendê-la, pois era inteiramente gratuita. Esta imensa alegria jorrava-nos de todo o ser, cujo interior era extremamente vazio. Assim como um jacto de água brota da encosta de uma montanha, naturalmente e sob pressão, assim esta alegria jorrava em abundância, sem princípio ou direção; mas, ao conhecê-la, o coração e a mente jamais seriam os mesmos.

Enquanto ela irrompia, não percebíamos a essência daquela alegria; ela, no entanto, existia e sua natureza só se manifestaria, provavelmente, perante o tempo, mas este não teria como dimensioná-la. O tempo é mesquinho e não pode avaliar o que é abundante.

O corpo continuava fraco e vazio, mas, durante a noite passada e hoje pela manhã, o processo se tornou agudo, cessando logo após.

Krishnamurti, Diário de Krishnamurti

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