Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]


30 de Setembro

30.09.21

(...)

Ver com o pensamento e ver sem o pensamento são duas coisas distintas. Ao contemplarmos, com o pensamento, aquelas árvores ao longo da estrada e os edifícios do lado oposto aos campos assolados pela seca, o cérebro permanecia acorrentado ao tempo, à experiência e à memória. Neste processo, a incessante actividade do pensamento embota o cérebro, tornando-o incapaz de se renovar. A sua acção mostra-se inadequada e repetitiva por força do eterno mecanismo de reacção ao desafio. O acto de ver com o pensar mantém o cérebro prisioneiro do hábito e do reconhecimento. Dominado pelo cansaço e pela apatia, ele passa a actuar nos estreitos limites da sua própria criação. O cérebro atinge a liberdade quando o pensamento está ausente, o que não significa desequilíbrio ou loucura. Ausente o pensamento, resta apenas o estado de pura observação, livre do processo mecânico de reconhecer e comparar, justificar e condenar. Esse modo de ver desconhece a fadiga, pois destrói os processos mecânicos do pensar condicionado pelo tempo. O repouso absoluto renova a mente, torna-a apta a responder ao desafio sem reagir, a viver sem deteriorar, a morrer livre da tortura dos problemas. Ver sem o pensamento é ver sem a interferência do tempo, do conhecimento e do conflito. A liberdade de ver está fora do âmbito
da reacção, sempre presa a um motivo. A indiferença, o alheamento ou o desinteresse não resultam da observação livre de reacção. Ver sem o mecanismo do pensamento é ver sem restrições, de maneira imparcial, livre de qualquer barreira, porém apto a distinguir entre os diversos elementos que compõem o mundo em que vivemos. Existe uma diferença entre uma árvore e uma casa. Ver sem o pensamento não significa um cérebro adormecido. Ao contrário, é justamente quando ele está completamente despertado, atento, livre de atrito e dor. A meditação brota do estado de atenção, sem os limites temporais.

Krishnamurti, Diário de Krishnamurti

Autoria e outros dados (tags, etc)

28 de Setembro

28.09.21

Toda a forma de busca e exigência deve findar para que o desconhecido possa surgir. Naquela ocasião, era inesperada e espontânea a sua presença.

A beleza desabrochava da meditação no silêncio daquela madrugada. Não era a beleza criada pela restrita actividade do pensamento ou pela sensibilidade do sentimento; nem se tratava de uma fantasia, ou de mero produto do tempo, pois o cérebro encontrava-se imóvel. Sem ser uma reacção, havia nela a completa negação de todo o conhecimento, livre de qualquer motivo. A meditação era o movimento da liberdade total, sem nenhuma direcção ou controlo, em que havia a inesgotável energia do silêncio. Da inacção nasce o movimento da liberdade. Ele encerrava a bênção e o êxtase, que findavam em contacto com o pensamento.

Krishnamurti, Diário de Krishnamurti

Autoria e outros dados (tags, etc)

25 de Setembro

25.09.21

A meditação é o desabrochar do entendimento. Ela actua prontamente e nega o lento e gradual processo de acumulação. Sempre inadiável, a compreensão só existe no presente e a sua fulminante e avassaladora acção é motivo de temor consciente ou inconsciente. A compreensão pode alterar o curso da nossa vida, a nossa maneira de pensar e agir. Agradável ou não, ela põe em risco todas as nossas relações, mas, em sua falta, persiste o sofrimento. Este só pode cessar através do autoconhecimento, da clara percepção de todo o pensamento e sentimento, de cada manifestação do consciente e do inçonsciente. A meditação está na revelação da consciência e daquele movimento inexprimível que transcende o pensamento e o sentimento.

O especialista é incapaz de conceber o todo; vive para a sua especialidade, ocupação mesquinha do cérebro condicionado para ser religioso ou técnico. O talento e a aptidão do homem tendem a fortalecer o egocentrismo e sua acção é sempre fragmentada e conflituante. A capacidade humana só tem significado quando a mente atinge a compreensão global da vida. Caso contrário, a eficiência, um dos subprodutos da aptidão individual, torna o seu portador implacável e indiferente à totalidade da vida. O orgulho, a arrogância e a inveja, decorrentes da eficiência em determinada função, nos levam à competição, à desordem, à discórdia e à infelicidade. A plena compreensão da vida traz um novo significado  à actividade humana. Reduzir a vida ao nível estreito e fragmentado da luta pelo pão, pelos prazeres do sexo, da riqueza, da ambição, é fomentar o desespero e o interminável sofrimento. O cérebro opera na área especializada do fragmento, nas atividades egocêntricas, dentro do estreito limite do tempo. Por ser um fragmento e incapaz de ver o todo da vida, por hábil e refinado que seja, o cérebro desenvolve uma acção limitada, parcial. É a mente que contém o cérebro e não ao contrário, e só ela poderá compreender o todo.

A capacidade de ver o todo deriva do acto de negar. Este não é o oposto do pensar positivo visto que todo o oposto contém o seu contrário. Portanto, o acto de negar não admite oposto. Ao negar, o cérebro torna-se apto a perceber o todo e cessa de interferir, com as suas condenações e resistências no curso da vida. Deve ser espontânea a imobilidade do cérebro, pois qualquer espécie de esforço concorre para destruí-lo através da imitação e do conformismo. Do estado de negação surge a passiva imobilidade do cérebro, capaz de perceber o todo; nesse estado, de pura percepção, não existe o observador ou aquele que experimenta; só existe o ver. Então, a mente está desperta, livre da contradição e do conflito, gerados pela divisão entre o pensador e o pensamento. Existe apenas luz e claridade.

Krishnamurti, Diário de Krishnamurti

Autoria e outros dados (tags, etc)

23 de Setembro

23.09.21

(...)

Quanta liberdade naquela meditação que nos transportava ao desconhecido mundo de beleza e paz; um mundo sem imagens, sem símbolos ou palavras, sem o fluxo incessante da memória. O amor estava na morte de cada instante, e em cada findar havia a renovação do amor. Livre do apego e de amarras, florescia do nada, consumindo na sua chama os limites e os muros cuidadosamente edificados pela própria consciência. Tal beleza jamais fora plasmada em tela, em palavras, ou no mármore, pois transcendia todo o pensamento e sentimento. O puro êxtase da meditação trazia consigo o sentimento do sublime.

Como é estranho o desejo de poder, o poder do dinheiro, do prestígio, da capacidade, do conhecimento. Entretanto, uma vez alcançado, o poder acarreta conflito, confusão e sofrimento. Do eremita ao político, da dona-de-casa ao cientista, todos almejam o poder. E para alcançá-lo não hesitariam em matar ou destruir uns aos outros. 0 asceta conquista o poder por meio do sacrifício, do controle e da repressão; o político através de promessas, da capacidade de realização e da esperteza; o marido e a esposa, mediante a dominação mútua; o padre através do compromisso assumido com o próprio deus. Todos anseiam pelo poder, seja ele mundano, seja espiritual, e a autoridade que dele emana gera conflito, desordem e sofrimento. Todos os que buscam ou detêm o poder da autoridade são por ele corrompidos. O poder exercido pelo padre, pela dona-de-casa, pelo líder, pelo eficiente administrador, pelo santo, ou pelo político local, é nocivo e prejudicial; quanto maior o poder, mais nefasta a sua acção. O mal que ele produz contamina a quantos que, fascinados, passam a adorá-lo, apesar de trazer em seu bojo eterno conflito, dor e confusão. No entanto, ninguém ousa abandoná-lo.

Junto com o poder vem a ambição, o desejo de fama e a crueldade, comportamento que a sociedade aprova e chega a incentivar. Esse comportamento, exaltado socialmente e até pela igreja, desvirtua e aniquila o amor. Estimula-se a inveja e a competição, origem do medo, da guerra e do sofrimento, mas homem algum atreve-se a questionar aqueles valores. A rejeição de qualquer forma de poder é o princípio da virtude e da lucidez, que elimina todo o conflito e dor. Sem jamais abandonar os íntimos recessos dos nossos pensamentos e desejos, aquele germe da corrupção aflora inesperadamente, apesar dos esforços em reprimi-la, ou modificá-la, através de leis e da moral estabelecida. O fim do sofrimento humano está na investigação e na compreensão do desejo e do pensamento, tarefa primordial de cada um de nós. Devemos empreendê-la sozinhos, sem ajuda de ninguém, sem seguir sistema algum, sem almejar recompensa, pois, uma vez conscientes da estrutura do nosso ser, na percepção do que é, o facto se transforma.

Eliminado o desejo de poder, a confusão, o conflito e a dor, resta-nos aquilo que somos: um amontoado de memórias e uma crescente solidão. O desejo de poder e fama é uma fuga desta solidão, que emerge das cinzas da memória. Para transcendermos isso, precisamos ver o facto, enfrentá-lo sem jamais contorná-lo mediante condenações ou o temor do que é. O próprio acto de fugir da realidade, de fugir do que é, gera o medo. Para que se revele a verdade contida na solidão e nas cinzas da memória, deve ser espontâneo e absoluto o abandono do desejo de poder e fama. Da passiva observação, sem escolha, do facto, nasce uma realidade nova. Somente o amor torna possível o convívio, nunca o apego. Necessitamos de imensa energia para convivermos com as ruínas da solidão e esta energia só pode nascer quando já não existir o temor.

Ao experimentarmos esta solidão, deixando-a para trás como se atravessássemos uma porta, verificamos que nós e a solidão formamos uma única e indivisível entidade; cessa de existir o observador separado daquele sentimento, que supera a palavra. As diferentes formas de fuga deixam de atrair-nos e então somos aquela solidão, sem saber como evitá-la, encobri-la ou preenchê-la. Rendemo-nos à evidência de que ela faz parte de nós, de que não existe nenhuma separação entre nós e a solidão. Nem mesmo o desespero, a esperança, o cinismo, ou a astúcia podem dominá-la. Somos aquela solidão, as cinzas que restaram da chama; a irremediável e intransponível solidão. O cérebro já não tem por onde escapar, pois é ele mesmo que cria a solidão, através da incessante actividade de auto-isolamento, de defesa e agressão. Consciencializando-se deste facto, adoptando uma postura de completa negação e passividade, o cérebro busca morrer, na absoluta imobilidade.

Das cinzas da solidão surge o movimento original do estar só, livre de influências, de pressões, de toda a forma de busca ou realização. É a morte do passado. Inicia-se, então, a viagem sem fim pelo desconhecido. E do que é imensurável nasce a força pura da criação.

Krishnamurti, Diário de Krishnamurti

Autoria e outros dados (tags, etc)

22 de Setembro

22.09.21

(...)

Surpreendia, naquela manhã, o vibrante colorido das flores amarelas no terraço. À luz da aurora, elas pareciam mais vivas e despertas do que as suas vizinhas. A presença real e objectiva daquela energia no nosso quarto desde a madrugada não era produto do pensamento ou da imaginação. Clareava e, mais uma vez, a serena imobilidade envolvia o corpo e a mente. Completamente desperto, o cérebro observava, sem interpretar. Força de incorruptível pureza e extraordinário vigor, sempre nova e impressionante, ela estava dentro e fora de nós, sem nenhuma divisão. Subjugados por esta energia, o coração e a mente cessavam de existir.

Somente na humildade floresce a virtude. Tão-pouco é virtude a moralidade social, mero ajustamento a um variável padrão de ambiente ou conduta. A moral vigente, aceite pela sociedade e pela igreja, que tornam respeitável esse modelo, também nega a virtude. Enraizada no conformismo e no desejo de recompensa ou medo à punição, esta moralidade pode ser ensinada e praticada, modelando a sociedade, através da influência e da propaganda, responsável por inúmeros padrões de conduta. Mas a virtude não é produto do tempo ou de circunstâncias. Ela não pode ser cultivada, e não admite controlo ou disciplina. Espontânea e gratuita, é impossível conceder-lhe a marca da respeitabilidade, ou dividi-la em bondade, caridade, amor fraternal e assim por diante. A virtude não é produto do ambiente, da riqueza, ou da pobreza, da abstinência ou de algum dogma. Ela não nasce da astúcia nem do pensamento ou da emoção. Tão-pouco resulta da revolta contra a moral social; sendo uma reação do pensamento, a revolta é mera continuidade modificada do que foi.

Se cultivada, torna-se a humildade orgulho disfarçado, na ânsia de tornar-se respeitável. Assim como é impossível o amor transformar-se em ódio, a vaidade jamais se tornará humildade. Pelo ideal da não-violência não se elimina a violência; esta simplesmente tem de findar. A humildade não é um ideal por alcançar, pois todos os ideais são falsos, sendo o facto a única verdade. A humildade não é o oposto do orgulho; ela, simplesmente, não tem oposto. Todos os opostos se inter-relacionam, mas nada há em comum entre humildade e orgulho. Este cessa não por acto voluntário, mediante a disciplina ou o desejo de lucro, mas na chama da atenção, livre da contradição e desordem causadas pela concentração. Termina o orgulho ao compreendermos toda a sua actividade. Essa compreensão vem com a passiva observação dos mínimos movimentos do orgulho. Tal observação é do presente e não pode ser exercitada ou praticada, pois nesse caso seria uma astúcia do pensamento, incapaz de suscitar a humildade. A atenção origina-se do silêncio e da extrema sensibilidade e imobilidade do cérebro. O centro que resulta da concentração, com a sua actividade exclusivista, é dissolvido pela atenção, aquela percepção instantânea capaz de destruir o orgulho. Desse estado brotam a humildade e a virtude que dão nascimento à bondade e à caridade. Não há virtude sem humildade.

Krishnamurti, Diário de Krishnamurti

Autoria e outros dados (tags, etc)

21 de Setembro

21.09.21

(...) 

Como somos ignorantes a nosso próprio respeito! Sabemos tudo sobre a distância entre a terra e a lua, sobre a atmosfera em Vénus, sobre a montagem de complexos cérebros eletrónicos, sobre a desagregação do átomo e da ínfima partícula de matéria, mas nada sabemos sobre nós mesmos. Ir à lua empolga-nos mais do que uma viagem no nosso interior. Por indolência, por medo ou, quem sabe, por não nos proporcionar o lucro ou a fama, hesitamos empreender esta viagem tão longa. Nada ou ninguém nos pode ajudar nesta jornada, nem mesmo um livro, uma teoria ou um guia qualquer. Temos de fazê-lo sozinhos, munidos de uma energia infinitamente superior àquela necessária à invenção e montagem de sofisticada máquina. E esta energia não pode ser obtida através de nenhuma droga, nem de nenhuma relação humana, ou ainda do controle ou da renúncia. Tão-pouco nenhum deus, ritual, crença ou prece nos pode propiciá-la. É justamente no abandono de tudo isto, ao compreendermos o intrincado mecanismo da fuga e do desejo, que aquela energia penetra e ultrapassa o consciente.

Impossível é adquirir esta energia acumulando conhecimentos a nosso próprio respeito, pois toda a forma de acumulação e apego a enfraquece e desvirtua. Tais conhecimentos com o tempo tornam-se um fardo, limitando-nos, aprisionando-nos. Com isso deixamos de ser livres para agir no estreito limite daqueles conhecimentos. O aprender está no presente imediato, e o saber sempre no passado. O desejo de acumular impede o acto de aprender, pois o conhecimento é estático, podendo apenas ser ampliado ou reduzido. Já o aprender é dinâmico e, portanto, prescinde do processo de acumulação. Não tem começo nem fim o autoconhecimento. Efémero é o saber e infinito o aprender.

Nós somos o resultado final de centenas de séculos de existência da humanidade, das suas esperanças e desejos, culpas e ansiedades, crenças e deuses, preenchimentos e frustrações; somos a acumulação de tudo isto com o acréscimo de épocas mais recentes. A descoberta dessas verdades profundas ou superficiais não significa a mera repetição de frases de efeito ou conclusões sobre o óbvio. Aprender é vivenciar todos esses factos, numa experiência directa e sentida, no contacto vivo, intenso, não teórico ou verbal, tão concreto quanto a fome que sente um homem verdadeiramente faminto.

No aprender não há aquele que aprende, pois este só sabe acumular conhecimentos. Da divisão entre aquele que aprende e o objecto da sua aprendizagem nasce o conflito, que dissipa a energia necessária ao aprender e ao autoconhecimento. Escolha é conflito e impede a percepção directa da verdade; o acto de condenar e de ver também impossibilitam o ver. Na percepção desse facto, isento de teorias ou conclusões, dá-se o aprender de momento a momento. Em verdade, o processo de aprender é interminável. É ele o factor primordial da existência, e não os fracassos, os êxitos alcançados ou os erros cometidos. O fundamental é o acto de ver, e não aquele que vê ou a coisa que é vista. O limite da consciência são as muralhas da sua própria existência, formadas pela experiência, pelo conhecimento, pela memória. Destruímos estas muralhas ao aprendermos sobre este condicionamento, colocando, assim, o pensamento e o sentimento na sua específica e limitada função. Eles deixam então de interferir nas amplas e profundas questões da existência. Morto o ego, com as suas tramas secretas, os seus anseios e exigências, com as suas alegrias e tristezas, inicia-se o eterno movimento da vida.

Krishnamurti, Diário de Krishnamurti

Autoria e outros dados (tags, etc)

20 de Setembro

20.09.21

Como era sufocante a atmosfera naquele auditório lotado, num dia de insuportável calor! Não obstante o cansaço e o desconforto físico, ao despertarmos durante a noite, deparámos com aquela coisa singular. Com a sua intensidade, não só invadira o quarto, mas alojara-se profundamente no interior do cérebro, parecendo superar todo o pensamento, espaço e tempo. O indescritível poder daquela energia impelia-nos para fora da cama e, uma vez sobre o terraço, batido pelo vento frio, aquela intensidade não cedia, prolongando-se por toda a manhã. Impossível conceber aquele desconhecido que não era algo imaginário, nem simulação, tão-pouco o desejo de sensação ou excitamento. Era ele sempre novo a cada aparição; o pensamento tentava em vão recordar acontecimentos passados, ou lembrar-se do ocorrido naquela manhã. Aquela coisa singular transcendia a esfera do pensar, do desejo e da imaginação. Sem ser ilusória, a vastidão do desconhecido é inacessível aos artifícios do pensamento e do desejo, e o cérebro incapaz de conceber aquela imensidão.

Curiosamente, esta aparição é sempre livre de esforço ou tensão; bem-vinda quando surge, sem ser chamada, a sua ausência não nos causa preocupação. Não podemos utilizar a sua força e beleza, nem atraí-la ou rejeitá-la. Ela vem e vai em total liberdade.

Isenta de qualquer esforço, era puro silêncio a meditação naquela manhã. Força imóvel, inefável, imensurável, estática, que irradiava incessante movimento expansivo na direcção do infinito. A acção contínua e explosiva do desconhecido prescindia de um centro que conduz à decadência e à estagnação, e a sua intensidade não era afectada pelas subtis artimanhas do cérebro. O silêncio por este produzido difere muito do estado a que nos referimos. Por não criar resistência, é imperturbável, contém e transcende todas as coisas. Nem mesmo o tráfego intenso de caminhões de transporte de carga para a cidade, ou o jogo de luzes do alto da torre, perturbava aquele silêncio intemporal.

Ao raiar do dia, encoberto por majestosa nuvem, o sol projectava no céu fantástico movimento de luz e sombra. Esse espectáculo só terminaria quando a nuvem sumisse por detrás das chaminés. Como é limitado o cérebro, por mais cultivado ou requintado que seja! Nada dissipa a sua mediocridade. Ainda que o cérebro vá à lua, explore o universo ou as profundezas da terra, projecte e monte o mais complexo maquinismo, inclusive computadores capazes de inventar novos computadores, e mesmo que ele venha a causar a sua própria destruição e ressurreição, nada disso o livrará da mediocridade. O cérebro só é capaz de funcionar no tempo e no espaço, toda a filosofia é limitada pelo seu próprio condicionamento e as teorias e especulações são urdidas por sua astúcia. É inútil qualquer tentativa de fuga de si mesmo. Seus deuses e redentores, seus mestres e líderes têm a medida da sua própria mediocridade. No seu esforço para superar a estupidez, a eficácia é determinada pelo grau da sua astúcia. Ora buscando, ora pressionado, o cérebro vive na sombra do seu próprio sofrimento, incapaz de transcender a sua futilidade.

A incessante actividade do cérebro, na busca das suas projecções, é inacção. As reformas postas em prática estão sempre a precisar de novas reformas. Acorrentado ao círculo vicioso da acção e da inacção, o pensamento é o desdobramento dos seus sonhos.

Activo ou inerte, nobre ou ignóbil, é infinita a sua superficialidade. Incapaz de escapar de si mesmo, vive na sordidez da sua virtude e moralidade. Só lhe resta permanecer completamente imóvel, o que não deve ser confundido com inércia ou indolência. Esta imobilidade é a única maneira de se preservar a sensibilidade do cérebro. Na renúncia de si mesmo e na rejeição das suas actividades, cessam as suas habituais e defensivas reacções, bem como o vício de julgar, condenar ou justificar. E é nessa renúncia que a mediocridade desaparece e cessa o movimento do vir-a-ser do desejo de preenchimento. Revela-se, então, o que é: trata-se de um instrumento mecânico, inventivo, calculista, funcional, cuja perfeição é assombrosa. Como toda a máquina, o cérebro é passível de desgaste e morte; torna-se medíocre ao tentar penetrar no insondável mistério do desconhecido, do imensurável. O conhecido é o seu elemento, e lhe é vedado actuar no incognoscível. Suas criações pertencem ao campo do conhecido, mas nem a palavra nem as imagens podem captar o mistério da criação. Jamais conhecerá ele esta beleza, pois a imensidão do indescritível somente aflora na completa imobilidade do cérebro.

Krishnamurti, Diário de Krishnamurti

 

Autoria e outros dados (tags, etc)

19 de Setembro

19.09.21

Existirá o futuro? Conhecemos a rotina do futuro planeado; das obrigações e tarefas a serem executadas posteriormente. Esses planos podem vir a ser alterados, modificados ou até mesmo esquecidos, mas o futuro permanece como um facto incontestável. Existe a distância entre dois pontos no espaço, entre o próximo e o distante; a distância em quilómetros; o espaço entre os seres; o veloz movimento do pensamento; a outra margem do rio e a lua distante. Há o tempo necessário para se percorrer um espaço, uma distância, e o tempo preciso para se cruzar o rio; para nos deslocarmos de um ponto a outro, o tempo é necessário, seja de um minuto, um dia, ou um ano. Esse é o tempo cronológico, tempo como meio de atingir um objectivo físico. Isto é óbvio e claro. Mas existirá um tempo futuro, completamente diferente deste tempo mecânico e cronológico? E, no plano psicológico, terá significado o tempo?

(...)

Existirá um ponto de chegada? Chegar significa viver no sofrimento e na sombra do medo. E haverá um ponto de chegada psicológica, uma meta a ser alcançada, um resultado a ser atingido? O pensamento estabelece um objectivo: deus, a bênção, o bom êxito, a virtude e tudo o mais. Mas, o pensamento é apenas a reacção da memória, que cria o tempo necessário para transpor a distância entre o que é e o que deveria ser. Este, por sua vez, é o ideal, mera questão teórica, sem nenhuma realidade. A verdade não depende do tempo, não tem nenhum objectivo por alcançar, nem distância a percorrer. O facto existe, e o mais é uma ficção. A verdade aparece quando se morre para o ideal, para as realizações, e para o objectivo, mera fuga do facto. O facto elimina o tempo e o espaço. E, então, existirá a morte? 0 que existe é o lento findar, a deterioração física, o desgaste orgânico que conduz à morte. Mas isto é tão inevitável quanto o desgaste da ponta do lápis. E será esta a causa do medo? Ou o que tememos é o findar do padrão de vida do vir-a-ser, do lucro, da realização? Este mundo nada vale; é o mundo da aparência e da fuga. O facto, aquilo que é, difere totalmente do que deveria ser. Este contém o tempo e a distância, o medo e a dor. O facto, o que é, resulta da morte do que deveria ser, onde já não há lugar para o futuro. O pensamento, criador do tempo, é impotente perante o facto e, incapaz de modificá-lo, luta para dele escapar; mas o facto sofre uma tremenda mutação ao cessar o movimento da fuga que determina a morte do pensamento, que é tempo. Na ausência do tempo e do pensamento existirá o facto, o que é? Aniquilando o tempo, o pensamento, quando já não existe movimento nem direcção, nem distância a percorrer, deparamos com a imobilidade do vazio. E nisto está a total destruição do tempo, do ontem, hoje e amanhã, da memória, da continuidade e do vir-a-ser.

Livre do tempo, resta apenas o presente imediato, a vida no agora. Dai nasce o estado de atenção fora dos limites do pensamento e do sentimento. As palavras e os símbolos, como instrumentos de comunicação, em si nada significam. A vida está sempre no presente; o tempo pertence tanto ao passado quanto ao futuro, e a morte do tempo exprime a vida no presente. Eis o que é a imortalidade, não a vida dentro dos limites da consciência. Esta é resultado e prisioneira do tempo. Quando o tempo deixa de existir, desaparece o sofrimento inerente ao processo do pensar e sentir.

Krishnamurti, Diário de Krishnamurti

Autoria e outros dados (tags, etc)

18 de Setembro

18.09.21

(...)

Os limites da consciência são anulados pela meditação; ela destrói o processo do pensar e sentir, urdido pelo pensamento. O método, a recompensa e as promessas deformam e debilitam aquela força misteriosa. Abundante energia é libertada pela meditação, mas ela é deformada e destruída mediante o controle, a disciplina e a repressão. A meditação é a chama que arde sem formar cinzas. As palavras, o sentimento, o pensamento, sempre deixam resíduos e o mundo vive das cinzas do passado. Meditar é viver em perigo, pois nada escapa àquela destruição, nem mesmo o mais leve frémito do desejo; e é da amplidão insondável desse vazio que surgem o amor e a criação.

A mutação da consciência não vem através da análise. É impossível transformá-la através do esforço, que gera o conflito, e que, portanto, fortalece o núcleo da consciência. Por mais lógico e equilibrado que seja, o raciocínio não conduz à libertação da consciência, pois é uma ideia formada pela influência, experiência e conhecimento, todos produtos da própria consciência. Constatar a falsidade dessas ideias e conceitos com a consequente rejeição do falso torna a consciência vazia. A verdade não tem oposto, tão-pouco o amor; a verdade surge da rejeição dos opostos. A autêntica rejeição não nasce da esperança ou da ânsia de realização. Livre do desejo de reconhecimento, a renúncia não admite recompensa ou barganha. Libertar-se da tradição é negar o falso conceito dos opostos, a falsa autoridade do ajustamento, do conformismo, da imitação, da experiência e do conhecimento.

Negar é estar só, livre de influência, da tradição, da carência psicológica, do apego, da dependência. Estar só é negar o condicionamento e o passado conteúdo da consciência. Observar sem discriminar e a renúncia ao condicionamento conduzem à solidão, que não é isolamento ou actividade egocêntrica. Tão-pouco significa a fuga da existência. Pelo contrário, é a libertação total do sofrimento e do conflito, do medo e da morte. Esta solidão é a própria mutação da consciência, a completa transformação daquilo que foi. Ela é o vazio e a ausência do ser e do não-ser. A mente se renova, a cada instante, na chama desse vazio. Apenas à mente vulnerável é acessível o infinito, em que da destruição surge o novo, a criação e o amor.

Krishnamurti, Diário de Krishnamurti

Autoria e outros dados (tags, etc)

17 de Setembro

17.09.21

(...)

A estranha energia esteve presente o dia todo; ténue, a maior parte do tempo, atingia momentos de intenso fulgor para, em seguida, reduzir a chama e prosseguir suavemente. A intensidade daquela energia imobilizara-nos, obrigando-nos a permanecer sentados. De madrugada, sentíamos a sua poderosa presença e, no silêncio do terraço, quando a cidade se aquietara, a meditação não se fizera de rogada e lá estava ela em toda a sua plenitude. O êxtase revelava a futilidade e infantilidade de tudo. Como era comum, nestas ocasiões, o corpo estava imóvel e o cérebro permanecia silencioso e sensível.

Pouco mudamos no decorrer das nossas vidas. Costumamos modificar-nos sob pressão interna ou externa, o que, na realidade, é mero ajustamento. Algum tipo de influência, uma palavra, um gesto, podem
suscitar a mudança superficial dos nossos hábitos. A propaganda, o jornal, ou um incidente qualquer alteram, até certo ponto, o curso dos acontecimentos. O Medo e a recompensa podem levar à substituição de um dado padrão de pensamento por um outro. Também o invento, a ambição, a crença acarretam diversas mudanças. Mas, tudo isto é tão insignificante quanto o movimento da superfície das águas. Não são fundamentais, profundas ou devastadoras aquelas transformações, pois a mudança, baseada em motivo, nada significa. A revolução sócio-económica é uma reacção e, como tal, nada tem de radical; consiste apenas numa troca de padrões. Esta mudança é mero ajustamento, uma acção mecânica, gerada pelo desejo de conforto, segurança, sobrevivência física.

Que produz a verdadeira mutação? O tempo e o espaço são o limite da consciência, do mecanismo do pensamento, do sentimento e da experiência. É um todo indivisível; por necessidade de comunicação, adoptamos a subdivisão da consciência em consciente e inconsciente, mas isso não é real. Ao nível superficial da consciência ocorrem mudanças, ajustamentos, reformas, acumulação de conhecimentos e técnicas; são superficiais e efémeras as mudanças que visam apenas ao ajustamento a uma nova ordem sócio-económica. O inconsciente aflora em sonhos, revelando as suas obsessões, exigências e íntimos desejos. Disso surge a necessidade de se interpretarem os sonhos, mas o intérprete é uma entidade condicionada. O estado de observação, livre da escolha e dualismo, é capaz de compreender instantaneamente qualquer movimento do pensamento e sentimento; torna-se desnecessário sonhar e o sono passa a ter um significado totalmente diverso. O observador e a coisa observada, o censor e o objecto da crítica, fazem parte da análise, da face oculta do consciente. Da análise nascem o conflito e o observador, esta entidade condicionada que interpreta e avalia os acontecimentos de maneira falsa e distorcida. Ainda que responsáveis por mudanças e ajustamentos superficiais da consciência, a auto-análise e a psicanálise são incapazes de provocar a sua radical transformação, ou a sua mutação.

Krishnamurti, Diário de Krishnamurti

Autoria e outros dados (tags, etc)

Pág. 1/2




Arquivo

  1. 2022
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2021
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2020
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2019
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2018
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2017
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2016
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2015
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2014
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D

Mais sobre mim

foto do autor