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Vinda do nada, a meditação penetrara no vasto e insondável vazio que é a essência de tudo. E é desse vasto desconhecido que surge a criação e a destruição, cuja base é o amor.
Livre do medo, toda a busca é sem motivo. Essa busca não nasce da mera insatisfação, mas da revolta com o padrão limitado do pensamento e do sentimento. De natureza efémera, a insatisfação somente aflora quando os objectos da satisfação se encontram ameaçados de destruição. Conhecemos bem o movimento cíclico da esperança e do desespero. A busca oriunda da insatisfação resulta sempre na ilusão colectiva ou individual, numa prisão plena de atractivos. No entanto, sabemos que existe a busca sem nenhum motivo; será isto a busca? Buscamos sempre o conhecido através de métodos e sistemas preestabelecidos. Esta não é a verdadeira busca, senão o nosso simples desejo de satisfazer-nos, de escapar mediante uma fantasia ou outra qualquer ilusão. E haverá sentido para a busca quando o medo, a satisfação e a fuga cessarem de existir?
Dissipado o motivo de toda a busca e eliminada a insatisfação e a ânsia de atingir a fama, há então a busca? E, cessando a busca, há a decadência e estagnação da consciência? Pelo contrário, é justamente esta eterna busca, esta troca permanente de um interesse por outro, de uma igreja por outra, que enfraquecem aquela energia, essencial à compreensão do que é. E sempre novo o que é; ele jamais foi ou será e a libertação daquela energia só será possível quando já não existir busca nenhuma.
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Krishnamurti, Diário de Krishnamurti
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Fala-se do medo. Trata-se de uma abstracção, pois está sempre no futuro ou no passado, jamais no presente. Ao surgir o sentimento denominado medo, tratar-se-á realmente de medo? Perante o perigo, de ordem física ou psicológica, é impossível fugir dele. Mas, na absoluta atenção, o medo desaparece. Ele surge da desatenção, do desejo de escapar do facto e, portanto, ele é a própria fuga.
Nos relacionamentos, o medo assume diferentes formas, tais como arrependimento, ansiedade, esperança, desespero. Está intimamente vinculado à busca de segurança, àquilo a que chamamos de amor e devoção, à ambição e bom êxito, à vida e à morte. O medo existe em todos os níveis da nossa consciência, sendo também a origem da resistência, da autodefesa e da renúncia. Medo do escuro e medo da claridade; medo de ir e medo de vir. O desejo de segurança está no princípio e no fim do medo; o desejo de segurança, física ou psicológica, o desejo de escapar à incerteza e à impermanência das coisas. Desejamos a continuidade na virtude, nas relações, na acção, na experiência, no conhecimento, em todos os níveis da existência. Todos clamam por segurança, e dessa insistente busca nasce o temor.
E existirá a estabilidade material ou psicológica? Vemos que mesmo no plano físico, vivemos na incerteza, sob constante ameaça de guerras, revoluções, da implacável marcha do progresso, acidentes e terremotos. É indiscutível a geral necessidade de abrigo, alimentação e vestuário. Apesar da desenfreada busca de segurança, conhecemos nós a segurança ou a permanência psicológica? Claro que não. E a não aceitação deste facto, a fuga deste facto, é o medo. A incapacidade de encarar esta realidade cria a esperança e o desespero.
O pensamento em si é a fonte do medo. O tempo é a sua essência e pensar no futuro suscita o prazer ou a dor; se visamos a um objectivo prazeroso, o pensamento busca alcançá-lo, temendo malograr-se; sendo
desagradável, no próprio desejo de evitá-lo está o medo. O prazer e a dor são a raiz do medo, e o pensamento e o sentimento, gerados pelo tempo, acompanham-no. A compreensão do mecanismo da memória, do pensamento e da experiência elimina o temor. O processo da consciência é o movimento do pensamento, no sentido horizontal ou vertical; ele não é apenas a coisa pensada, senão aquilo que lhe dá origem. É a crença, o dogma, a ideia, o raciocínio, e é também o centro do qual estes emanam. E esse núcleo é o nascedouro de todo o medo. Sentimos realmente medo, ou estaremos apenas conscientes da causa que produz o mecanismo de fuga do pensamento? A auto-protecção física demonstra sanidade e equilíbrio mental, mas todas as demais e conhecidas formas de defesa psicológica implicam resistência e temor. Essa reacção impede a segurança física, transformando-a numa questão de classe, prestígio e poder, originando uma brutal competição.
Libertamo-nos do medo, superficial ou profundo, ao compreendermos totalmente a estrutura do pensamento e do tempo, seus efectivos criadores. À autocompreensão é o desabrochar e findar do medo.
Cessando o medo, cessa também o poder de criar ilusões, mitos, visões, carregadas de esperança e desespero. Tem início, então, o movimento que vai além da consciência, do pensamento e sentimento. É a libertação, por parte da consciência, dos desejos e anseios íntimos. Então, nesse vazio, livre de influência, de conceitos, barreiras ou palavras, nessa imobilidade do tempo e espaço, vislumbramos o inefável.
Krishnamurti, Diário de Krishnamurti
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A compreensão da carência psicológica é de vital importância. É imprescindível a satisfação das necessidades básicas de alimento, roupa e abrigo. Mas, existirão outras necessidades? Ainda que presos no conjunto das exigências psicológicas, questionamos-lhe a validade. Será inevitável vivermos sob a pressão constante das exigências de sexo, da busca de preenchimento, da compulsória ambição, da inveja, da avidez? Através dos tempos, o homem fez disso a sua vida e esse padrão de existência é exaltado pela sociedade e pela igreja. Condicionados que somos, aceitamos esta maneira de viver, resistindo debilmente à correnteza, fracos e amedrontados. E a fuga tomou o lugar da realidade. As carências interiores constituem um mecanismo de defesa perante um desafio de significado mais profundo. A busca de preenchimento, a necessidade de ser alguém brotam do medo do desconhecido. A identificação com um país, um partido ou crença, como forma de auto-preenchimento, é fuga da própria nulidade, do vazio, da solidão e das actividades egocêntricas. São inúmeras as exigências psicológicas que se multiplicam e constantemente se renovam. Eis porque todo o desejo é contraditório e premente.
O desejo é inevitável; variam os objectos do desejo, mas o desejo está sempre presente. Débil ou forte, controlado, torturado, negado, aceite, reprimido, livre ou aniquilado, ele está sempre lá. Que há de errado no desejo? Qual o motivo dessa guerra constante? Mesmo causando desordem, sofrimento, dor, não conseguimos dominá-lo. Compreendê-lo sem desfigurá-lo através da repressão ou disciplina, é entender as exigências psicológicas. Essas exigências e o desejo são inseparáveis, bem como o desejo de preenchimento e a frustração. A essência do desejo é o conflito, e é falso classificá-lo como nobre ou vil. Do eremita ao líder político, todos somos consumidos pela voracidade do desejo. Na compreensão das exigências físicas e psicológicas, ele deixa de ser uma tortura. Então, transforma-se, ao superar o conteúdo do pensamento e do sentimento, a sua carga de emoções, mitos e ilusões. Dessa compreensão, a tortura do desejo se transforma na chama da vida criadora, na qual se consome toda a mesquinhez humana. Nessa chama estão contidos o amor, a morte e a beleza, cuja infindável energia é a própria vida.
Krishnamurti, Diário de Krishnamurti
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Coisa extraordinária é a mente, que contém o cérebro, o pensamento, o sentimento e o variado mundo de emoções e fantasia. Não é este conteúdo que forma a mente total, pois, em verdade, ela transcende o que contém. No entanto, o conteúdo não tem existência própria, porquanto ele existe em função mesmo da mente. O intelecto, o pensamento, o sentimento e a consciência nascem do vazio da mente. A árvore não é a palavra que a designa, não é as folhas, os galhos ou as suas raízes; é o conjunto desses elementos que forma a árvore, e esta, por sua vez, nada tem a ver com as suas partes componentes. O conteúdo mental é um atributo da mente, que em si é o vazio, mas não é a própria mente. O tempo e o espaço vicejam nesse vazio. A vida e seus inumeráveis problemas formam o conteúdo do cérebro. Limitado por natureza, o cérebro é incapaz de apreender a vastidão da mente, porque o todo não é a soma das partes. No entanto, contrariamente a este princípio, o cérebro busca formar o todo através da união das partes que se contradizem.
A actividade da memória, a acção baseada no conhecimento, o conflito dos desejos opostos, a busca de liberdade estão dentro dos limites do cérebro. Por mais que ele aprimore, amplie ou acumule ps seus desejos, a dor jamais cederá. Enquanto o pensamento for mera reacção da memória e da experiência não haverá fim para o sofrimento. Existe um “pensar” oriundo do completo vazio da mente; por ser destituído de centro, este vazio é a acção do infinito. Daí surge a verdadeira criação, diferente da criação humana. O amor e a morte são esse vazio criador.
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Krishnamurti, Diário de Krishnamurti
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Meditar não é perseguir uma ideia, mas compreender e transcender o pensamento e o sentimento. A meditação é o ingresso no desconhecido.
Inteligência não é inventividade, memória, ou mero exercício verbal. É muito mais do que isso. Por bem informados e talentosos que sejamos, em certo aspecto da existência, somos ignorantes em outros sentidos. A acumulação de conhecimentos não reflecte, necessariamente, uma mente inteligente. Tão-pouco a capacidade e o talento. Mas a sensível percepção da vida, dos seus problemas, das suas contradições, das suas aflicções e alegrias, revela sabedoria. Estar consciente de tudo isto, sem opção, sem ser tragado pela complexidade das questões vitais, sem resistir ao fluxo avassalador da vida, é ser inteligente. Implica também não depender das circunstâncias e, portanto, estar apto a compreender e a libertar-se da influência e das condições ambientais. Nas suas camadas mais superficiais e profundas, a consciência é prisioneira do tempo. Mas a inteligência supera todas as barreiras, livre de qualquer objectivo de ganho individual ou colectivo. Ela nasce do aniquilamento, da acção revolucionária que desmistifica o reformismo, sem o que toda a transformação é mera continuidade modificada. A capacidade de destruir o passado psicológico é a essência da inteligência, cuja falta traz sofrimento na acção. O sofrimento é a negação da inteligência.
A ignorância vem da ausência de auto-compreensão, esse aprender sem fim. Não nos referimos à acumulação do saber, que gera inevitavelmente o núcleo ou o centro do conhecimento, da experiência; nesse processo acumulativo, no sentido positivo ou negativo, não existe lugar para a lucidez. Da compreensão do pensar e do sentir, ao cessarem a resistência e o desejo de mais, surge o autoconhecimento e a inteligência. O autoconhecimento, como acção do presente, difere da auto-crítica exercida pelo centro oriundo da experiência e do saber, em que o passado, vindo à tona, impede a compreensão do presente. Investigando a nós mesmos, criamos inteligência.
Krishnamurti, Diário de Krishnamurti