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Nem sequer temos um reino.
E o pouco que temos
não é deste mundo.
Mas tão-pouco é do outro.
Órfãos de ambos os mundos,
com o pouco que temos
resta-nos apenas
fazer outro mundo.
Roberto Juarroz
Dentro das cavernas marinhas
há uma sede há um amor
há um êxtase,
tão duro como as conchas
podes segurá-las na palma da tua mão.
Dentro das cavernas marinhas
dias inteiros olhava-te nos olhos
e não te conhecia nem tu me conhecias.
Yorgos Seferis
Perceber os deuses e a catástrofe; melhorar o dia, percebendo.
Aproveitar o chão para subir: nada acontece no céu até lá chegarmos.
Atar o invisível ao quotidiano com uma corda de estender a roupa:
devorar dias, oferecê-los sobre a mesa como um almoço. Fugir.
Não têm factos: os Deuses bebem apenas: fumam velhos, recém-
-nascidos: no céu os animais valem tanto como os reis.
Só o sangue importa; e o modo como se morre.
Os Deuses também morrem, mas neles, os ossos, desaparecem
de forma distinta.
Como se fôssemos água: alguém nos bebe.
Pedra a pedra e pé a pé
E coração a coração e cabeça a cabeça
Os dias bons passaram
Fio a fio e folha a folha
E um a um e só a só
Os dias são bons e não passam
Grão a grão corpo a corpo
E flanco a flanco e mão a mão
Só alguém muito astuto ganhará a batalha
Pedra a grão e só a um
E de mão no coração e cabeça no coração
O amor é vasto como o mundo.
Robert Desnos
acolho a primeira palavra
as primeiras frases
os verbos irregulares
desperto-te para as traições
para as esperanças
tantas vezes misturadas
ouço-te as dúvidas os recomeços
dou-te instrumentos
para o resto do caminho
e invoco por fim
o tudo que m’envolve
ó sopro ordenador do mundo
– energia que sempre permaneces –
podes levar-me quando quiseres
estou pronto
Ver o que acontece aqui, onde não há ninguém, onde nada acontece, arranjar maneira de aqui acontecer qualquer coisa, haver alguém, pôr fim a isto, fazer silêncio, ir no silêncio, ou noutro ruído, um ruído de vozes diferentes das vozes de vida e de morte, de vidas e mortes que não querem ser as minhas, ir na minha história, para poder sair dela, não, é tudo treta. Será possível que acabe por me crescer uma cabeça que seja minha e onde possa preparar venenos dignos de mim, e pernas para andar a pé, estaria finalmente, aqui, poderia ir-me embora, não peço mais nada, não, não posso pedir nada. Nada a não ser a cabeça e as duas pernas, ou uma só, no meio, ir-me-ia embora, ao pé-coxinho. Ou apenas a cabeça, muito redonda, muito lisa, não é preciso haver feições, e eu rolaria, pelas encostas abaixo, quase um puro espírito, não, não resultaria, a partir daqui é tudo a subir, tem de haver a perna, ou coisa que o valha, talvez uns anéis, contrácteis, com uns anéis vai-se longe. Que mal há em partir da porta do Duggan, por uma manhã de Primavera chuvosa e soalheira, sem saber se se pode chegar à noite? Seria tão fácil. Que mal há em estar escondido nesta carne ou noutra qualquer, neste braço apertado por uma mão amiga, e nesta mão, sem braço, sem mãos, e sem alma nestas almas trementes, através da multidão, no meio dos arcos, das bolas? Não sei, o que sei é que estou aqui e continuo a não ser eu, é com isso que tenho de me contentar. Não há carne em lado nenhum, nem nada que ajude a morrer. Esquece isso tudo, querer esquecer isso tudo, sem saber o que isso tudo significa, é fácil de dizer, é fácil de fazer, em vão, nada mexeu, ninguém falou. Aqui, aqui nada acontecerá, aqui não haverá ninguém, tão cedo. As partidas, as histórias, não estão para breve. E as vozes, venham elas de onde vierem, estão bem mortas.
Samuel Beckett, Novelas e Textos para Nada