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Como é estranho o desejo de se exibir ou de ser alguém! Invejar é odiar, e a vaidade corrompe. Como é difícil a simplicidade e a autenticidade! A autenticidade é, em si, uma tarefa das mais árduas, ao passo que o desejo de se tornar alguém oferece pouca dificuldade. É muito fácil fingir ou representar, mas é extremamente complexo sermos aquilo que somos; e isto porque estamos sempre a mudar; nunca somos os mesmos e cada instante revela uma nova faceta, uma nova dimensão e profundidade. Não podemos ser todas estas coisas ao mesmo tempo, pois cada instante traz consigo algo novo. Portanto, se formos inteligentes, abriremos mão da pretensão de sermos alguém ou alguma coisa. Podemos estar certos de que somos muito sensíveis e eis que um incidente ou um pensamento fugaz nos mostra o contrário; ou, então, podemos considerar-nos talentosos, cultos, de agudo senso estético e dignos, mas, de repente, ao dobrarmos uma esquina, percebemos o quanto somos ambiciosos, invejosos, carentes, brutais e ansiosos. Somos tudo isto, de momento a momento, e, no entanto, desejamos a continuidade e a permanência daquilo que nos traga lucro e prazer. E enquanto buscamos o lucro e o prazer, todas as demais formas do nosso ego não cessam de exigir preenchimento. Tornamo-nos, assim, um campo de batalha onde a ambição, trazendo prazer e dor, sai vitoriosa, com a sua inveja e medo. A palavra amor serve para manter as aparências, para garantir a respeitabilidade e a instituição familiar; porém, nós nos vemos enredados nos nossos próprios compromissos e actividades, isolados, ansiando por reconhecimento e fama, nós e a nossa pátria, nós e o nosso partido, nós e nossos misericordiosos deuses.
Portanto, é extremamente difícil sermos o que somos; se estivermos despertos, sabemos o quanto isto é doloroso e verdadeiro. Ao percebermos este facto, entregamo-nos ao trabalho, a uma crença, aos nossos fantásticos ideais e meditações. Àquela altura, já estamos velhos e prontos para morrer, se é que ainda não morremos interiormente. Deixar tudo isto de lado, libertando-nos da contradição e do eterno sofrimento e renunciar a qualquer forma de preenchimento ou realização pessoal, é o que de mais natural e inteligente nos cumpre fazer. Mas, para que procedamos assim, para que deixemos de ser alguém, é preciso desvendar a nossa face oculta, expô-la sem medo, a fim de a compreendermos. A compreensão das nossas ânsias e desejos ocultos vem da plena consciência deles, o que é também indispensável perante a morte; desta forma, o puro acto de ver destrói aquela estrutura psicológica, libertando-nos do sofrimento e do desejo de ser alguém. Não ser alguém não significa um estado interior negativo; o próprio acto de negarmos aquilo que somos é uma atitude realmente positiva, e não uma reacção, que, em verdade, é inacção; é desta inacção que se origina o sofrimento. Em tal negação reside a própria liberdade. Desta ação positiva nasce incrível energia; ideias e pensamentos dissipam energia. Ideia é tempo, e viver no tempo é viver na desintegração e no sofrimento.
Krishnamurti, Diário de Krishnamurti