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A noite já ia alta quando a meditação invadia e transcendia os espaços do cérebro. Ela não significa conflito, a luta entre o que é e o que deveria ser; livre do controlo, movimento algum perturbava aquele estado. A contradição entre o pensador e o pensamento estava ausente, pois nenhum dos dois existia. Restava apenas o ver, sem o observador, cuja acção brotava do inexplicável vazio. A relação entre causa e efeito conduz à inactividade, isso que em regra denominamos acção.
Estranha coisa o amor, que se tornou tão respeitável: o amor a deus, o amor ao semelhante, o amor à família. Primorosamente demarcado como sacro e profano, como dever e responsabilidade, como disciplina e sacrifício, tanto os padres como os generais, ao planearem as guerras, invocam o amor. Os políticos e as donas-de-casa sempre se queixam dele. O ciúme e a inveja alimentam o amor, que serve de prisão a toda a forma de relacionamento. Ele está nas écrans dos cinemas, nas páginas das revistas, e cada estação de rádio e televisão o apregoa. Ao findar o objecto do amor, surge a foto emoldurada na parede, ou a imagem cultivada pela memória ou pela crença. Esses valores passam de geração a geração, sem que o sofrimento tenha fim.
A continuidade do amor resulta no prazer, sempre acompanhado da aflição; apegados ao prazer, lutamos para nos desvencilhar da dor. Através da continuidade se busca a permanência e a certeza nas relações.
Ao evitar-se qualquer mudança nas relações, fica-se enredado na sensação opressiva da segurança e na agonia do hábito. E, tachando de amor esse fluxo incessante de prazer e dor, tornamo-nos prisioneiros daquela obsessão. Para escapar ao tédio buscamos refúgio na religião e no romantismo, variável de acordo com as pessoas, que, em verdade, é uma fuga eficaz perante o facto do prazer e da dor. Sem esquecer, é claro, deus, o maior apelo e a derradeira esperança da humanidade, e o qual se tornou tão respeitável e lucrativo.
Nada disto é amor. Não há continuidade no amor; ao contrário da memória, ele ignora o amanhã ou o futuro. As recordações nascem das cinzas do passado, mas o amor é livre do jugo do tempo e desconhece a promessa, a esperança ou o desespero. O cérebro não pode conceber o amor pois este não pertence a nenhuma crença, símbolo ou sentimento. Da sua eterna morte e ressurreição advém a destruição definitiva, o aniquilamento do conhecido, os quais são o próprio amor.
Krishnamurti, Diário de Krishnamurti