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O estado de consciência de base em relação ao qual se fala de um “estado alterado de consciência” é o “estado comum de consciência”, sendo todavia fundamental recordar que este “não é algo natural ou dado, mas antes uma construção altamente complexa, um instrumento especializado para lidar com o nosso ambiente e com as pessoas nele”, sendo útil para fazer algumas coisas, mas inútil ou perigoso para outras. O estado comum de consciência é assim construído mediante a selecção que cada cultura faz do vasto potencial de consciência inerente ao ser humano, escolhendo e desenvolvendo um pequeno número apenas das suas possibilidades, rejeitando outras e ignorando muitas. Essa actualização de uma determinada e reduzida parte do campo de todos os possíveis e outros factores ocasionais são os elementos estruturais do estado comum de consciência. Nesta perspectiva, pode dizer-se que “somos simultaneamente os beneficiários e as vítimas da particular selecção da nossa cultura” e ao mesmo tempo compreender que o enorme interesse dos estados alterados de consciência resida na “possibilidade de usar e desenvolver potenciais latentes que residem fora da norma cultural”. O interesse dos estados alterados de consciência aumenta à medida que se reconheça que muitos dos contornos dessa “norma cultural” constituem na verdade uma “normose”, ou seja, uma “patologia da normalidade”, que impede a plena realização do melhor potencial humano, prendendo indivíduos e grupos no medo de ser quem no fundo são, com toda a alienação, conflitos e sofrimento resultantes. Alguns dos estados alterados de consciência – não todos, pois muitos podem ser tão ou mais condicionadores e patológicos do que o estado comum de consciência – podem assim ser reconhecidos e apreciados como aberturas da mesma consciência para dimensões mais amplas e plenas de si e do real, aquilo que Stanislav Grof vê como o potencial heurístico e curativo do holotropismo (a orientação para o todo) das “emergências espirituais”, que podem constituir o caminho por excelência para a evolução humana e a superação da crise da civilização.
Seria aqui interessante recordar que “realidade” vem do latim res (coisa) e este, segundo alguns, do proto-itálico reis, por sua vez procedente do proto-indo-europeu reh, ís, com o significado de “riqueza, bens”, afim ao antigo persa rāy- (paraíso, riqueza), ao avéstico rāy-, com o mesmo sentido (paraíso, riqueza), e ao sânscrito rayí (propriedade, bens). Se real designa originariamente o que é rico, pleno, bom, abundante, podemos indagar se o estado comum de consciência, ao actualizar apenas um restrito leque de potencialidades da mesma, não se priva implicitamente da plenitude do real, reduzindo-o ao que se limita a ser o objecto configurado ou construído nas estruturas, quadros e categorias dessa sua percepção limitada. Ao escrever isto estamos uma vez mais conscientes de que a categoria de “estado alterado de consciência” é muito ampla e inclui experiências extremamente distintas, quanto à sua origem, natureza e efeitos, abrangendo quer processos de ampliação e subtilização, quer de redução e regressão, da consciência e da experiência de si e do mundo.
Paulo Borges, Do Vazio ao Cais Absoluto ou Fernando Pessoa entre Oriente e Ocidente