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17.08.15

Isto vai avançando, vai avançando, e quando aparecem os que me conheceram, vá, vá, é como se, não, é prematuro. Mas eu apareço, cucu cá estou eu outra vez, a bem da causa, como a raiz quadrada de menos um, fiz os meus estudos clássicos, ora vamos lá ver, esta cabeça lívida, mascarrada de tinta e de compota, caput mortuum de uma juventude estudiosa, orelhas de abano, olhos revirados, cabelos ralos, boca a espumar, e a mastigar, o que é que ela está a mastigar, uma baba, uma prece, uma lição, um pouco de cada, uma prece aprendida para o que der e vier, antes do fim da alma, e que aflora, de través, na velha boca já sem palavras, na velha cabeça que já não ouve, estou velho, foi rápido, um velho baboso, que fez os seus estudos clássicos, no urinol de dois lugares da Rue Guynemer, onde a água escorrendo faz o mesmo ruído de há sessenta anos, o meu urinol predilecto, por causa do ruído da água, parece a minha mãe a assobiar, com a testa encostada ao tabique, no meio dos grafitos, gemendo da próstata, escarrando avés, de braguilha abotoada, não estou a inventar nada, por distracção, ou cansaço a mais, ou indiferença, ou de propósito, para gozar melhor, sei bem o que digo, ou maneta, é melhor maneta, sem mãos, sem braços, é preferível assim, velho como o mundo, lixado como o mundo, amputado por todos os lados, de pé sobre os meus cotos fiéis, a rebentar de mijo velho, de velhas preces, de velhas lições, lado a lado carcaça, alma e crânio, já para não falar dos escarros, não falemos dos escarros, dos soluços transformados em muco, vindos do coração, estou completo, não contando com algumas extremidades, fiz os meus estudos clássicos, depois envelheci, mas sem me orgulhar disso, sem reivindicar nada, num sobressalto de ejaculações, Jesus, Jesus. Noites, noites, mas que noites, feitas de quê, e quando, não sei, de sombra amiga, de céus amigos, de um tempo satisfeito, de um tempo de tréguas, antes da meia-noite, não sei, sei tanto como então, quando dizia para comigo, cá de dentro, ou lá de fora, da noite que chegava ou de debaixo da terra, de longe em todo o caso, Onde é que eu estou, para só falar do lugar, e como é que fui feito, e desde quando, só para falar do tempo, e até quando, e quem é este idiota que não sabe para onde há-se ir, que não pode parar, que se tomava por mim e por quem eu me tomava, disparates, a mesma cantiga de sempre.

Samuel Beckett, Novelas e Textos para Nada

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