Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]
(...)
Ontem, ao entardecer, a “coisa” singular veio de repente numa sala que dava para uma rua de tráfego intenso; a pujante beleza daquele estado desconhecido extravasava os limites do aposento, o tráfego ruidoso, os jardins e as colinas distantes. Grandiosa e impenetrável, a sua presença permaneceu viva a tarde toda e, mesmo à hora de nos deitarmos, quando se tornou insistente a bênção da imensa plenitude. Diferente a cada aparição, exibindo sempre algo de novo, uma qualidade inédita, uma nuance subtil, ou um detalhe original antes não observado, aquele estado era inacessível ao pensamento, à formação de hábitos, ao processo acumulativo de memorização e análise. Provinha da ausência do tempo necessário ao acto de experimentar e da imobilidade do cérebro em que cessava toda a forma de pensar.
Eternamente presente, a sua intensa e vital energia fluía espontaneamente, sem atrito, sem esforço ou direcção. A sua intensidade, de tão forte, tornava inúteis as tentativas do pensamento e sentimento em ajustá-la às suas fantasias, crenças, experiências e exigências. Apesar de abundante e inesgotável, costumamos utilizar aquela energia e dar-lhe uma direcção, afeiçoando-a à nossa vontade, ou deformando-a segundo o nosso padrão de vida, o nosso grau de experiência e conhecimento. O que destrói aquela energia é a ambição, a inveja e a avidez, origem de todo o conflito e sofrimento; a sua força é prejudicada pela cruel ambição, individual ou colectiva, origem do ódio, do antagonismo e do conflito. Ao motivar uma acção, a inveja corrompe essa energia, trazendo consigo a insatisfação, a dor, o medo; o medo vem acompanhado do sentimento de culpa, da ansiedade e das aflições oriundas da comparação e do desejo de imitar. O padre e o general, o político e o ladrão resultam da distorção dessa mesma energia. Esta ilimitada energia, fragmentada pelo nosso desejo de segurança e continuidade, é o solo fértil da futilidade, da competição, da crueldade e das guerras. Essa fragmentação é que ocasiona o eterno conflito entre os homens.
Ao superarmos essas coisas, com naturalidade e sem esforço, vislumbra-se a imensidão dessa força, que floresce na liberdade. Uma vez livre, ela deixa de causar conflito e dor. Cada vez mais abundante, torna-se ela a própria vida, que não tem princípio ou fim; essa energia é a própria criação, que nasce do amor e da destruição.
Aquela energia, se dirigida, só traz conflito e dor; mas da sua integração vem o êxtase do infinito.
Krishnamurti, Diário de Krishnamurti