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De todas as felicidades que lentamente me abandonam, o sono é uma das mais preciosas e também das mais comuns. Um homem que dorme pouco e mal, encostado a numerosas almofadas, tem tempo de sobejo para meditar sobre esta particular voluptuosidade. Concordo que o sono mais perfeito está quase forçosamente ligado ao amor: repouso meditado, reflectido em dois corpos. Mas o que me interessa aqui é o mistério específico do sono, saboreado por si mesmo, o inevitável mergulho a que se aventura todas as noites o homem nu, sozinho e desarmado, num oceano onde tudo muda, as cores, as densidades, o próprio ritmo da respiração, e onde encontramos os mortos. O que nos tranquiliza no sono é que se sai dele, e que se sai sem qualquer mudança, pois que uma extravagante interdição nos impede de trazer connosco o resíduo exacto dos nossos sonhos. O que nos tranquiliza também é que ele cura a fadiga, mas cura-nos, temporariamente, pelo mais radical dos processo, arranjando as coisas de maneira que deixamos de existir. Nisso, como noutras coisas, o prazer e a arte consistem em nos abandonarmos conscientemente a esta bem-aventurada inconsciência, consentirmos em sermos subtilmente mais fracos, mais pesados, mais leves, e mais confusos que nós mesmos. (...) Evoco os sonos bruscos sobre a terra nua, na floresta, depois de fatigantes dias de caça; o ladrido dos cães acordava-me, quando não eram as suas patas postas sobre o meu peito. O eclipse era tão total que eu teria podido sempre encontrar-me outro, e espantava-me, ou às vezes entristecia-me, o estrito ajustamento que me trazia de tão longe a este estreito cantão da humanidade que sou eu próprio. Que eram estas particularidades às quais ligamos a maior importância, visto que contavam tão pouco para o livre dormidor e que, por um momento, antes de entrar com pena na pele de Adriano, eu chegava a saborear quase conscientemente esta sensação de homem vazio, esta existência sem passado?
Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano