Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]
As aleivosias que me fazem tropeçar e desesperar, que todos os dias me levam a ficar meio doido, deixam de ter em mim qualquer efeito quando inteiramente as explico, do mesmo modo que já nada me afecta nem sequer mortifica, quando o explico a mim próprio. Explicar a existência, não só a descobrir, mas esclarecê-la cada dia na mais larga medida é a única possibilidade de fazer dela alguma coisa. Antes não tinha essa possibilidade, a possibilidade de interferir no jogo diário e mortal da existência, não tinha para isso nem o entendimento nem a força, hoje o mecanismo põe-se em funcionamento por si próprio. É um processo de arrumação diário, a minha cabeça é arrumada, as coisas são colocadas no seu lugar todos os dias. O que não serve para nada é rejeitado e pura e simplesmente deitado para fora da minha cabeça. O procedimento sem dó nem piedade é também uma característica da idade avançada. Para resistir às modas, o isolamento e a firmeza do espírito são a única salvação. Quantas modas intelectuais já passaram por mim. Os abjectos aproveitadores de resíduos estão sempre em actividade. Mas os que dominam o mercado com os seus produtos em saldo são como tal facilmente reconhecíveis e, com o tempo, vão por si mesmos pisar a sua própria imundície. O sobrevivente tem de criar um recanto favorável num lugar isolado para as suas conquistas. O ar é rarefeito, mas eu estou habituado a ele. O ou/ou encontra-se há já bastante tempo em equilíbrio. O que é que se deve apreciar mais, o fraseado ou o elementar? Fica-se no absurdo. Eu escutei tudo e não segui nada. Eu experimento ainda hoje não saber como vai sair, fascina o solitário que voltei a ser.
Thomas Bernhard, texto "A Cave" (Autobiografia)