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Por um maquiavelismo mais de acordo com o século e os costumes do lugar ou por um impulso de humanidade que não tinham querido reconhecer o sectarismo que possivelmente nos perturba ou a nossa real ignorância de todo o giro dos fenómenos - resolveu o adversário lançar um apelo à nossa lealdade e nela confiar; embora sempre em guarda, mais abertamente ofereceu o flanco a um hábil, decidido golpe; um movimento generoso, sincero ou não, deixou-o mais desprotegido.
Que vamos nós fazer? Já quero supor que tudo nele seja cálculo e falso movimento; os antecedentes que conheço autorizam-me a levantar tal hipótese; naturalmente não merece de ninguém senão desprezo ou o tédio vingador. Agora, porém, não se trata de tal homem, mas de mim próprio; não são a sua fraqueza, a sua lealdade que estão em jogo, mas o que dessas qualidades existe na minha alma; o não acreditar no que ele afirma não me autoriza a enganá-lo; se aceito a sua oferta estou obrigado a avisá-lo de todas as minhas intenções.
Há dois motivos para que o faça, mesmo com a certeza de que no fim serei sacrificado. Um, move-se na esfera do geral e é o respeito pela própria ideia de lealdade que eu pretendo ver reproduzida na máquina do mundo; laço que me transcende, e me sujeita pelo que há em mim de espírito divino; o não ter eu contribuído, uma só vez que seja, por mais plausíveis que me pareçam as razões, para que se estampe no mundo o selo das ideias pode aniquilar todo o meu esforço de vogar às terras da justiça; devo fazê-lo sempre: a mesma derrota poderá servir de ascensão a muitos outros.
E, no que se refere ao indivíduo, tenho acima de tudo o dever de velar pela dignidade humana que em mim reside, não a manchando com uma traição; de esperar, também, que ainda seja possível salvar o outro; os peitos abertos desarmam em geral as mãos armadas; os maus piores retornam quando encontram à sua volta os fingimentos e as armadilhas; a superioridade pode vencer o inferior, mas na inferioridade é ele o rei; quero depois perguntar porque o acusam de perverso e dissimulado se quase ninguém tem sido como ele senão dissimulado e perverso; mostremos-lhe nós próprios o caminho: talvez nos siga.
Agostinho da Silva, Diário de Alcestes
Há países em que os espíritos mais dados à carreira de pensar a cada momento se sentem obrigados à explicação do que é mais simples, mais elementar, mais suposto em todos os discursos. O esclarecimento do vocabulário, o regresso pedagógico a noções-base, o desfazer dos enganos inverosímeis que surgem da incultura e dos adormecidos raciocínios impedem-nos de atingir as alturas e de nos dar as obras para que estavam preparados e que, noutro terreno, romperiam seguras.
Eles próprios, naturalmente, têm consciência desse contínuo quebrar de voos; a maior extensão e maior vigor da consciência são, de facto, o que eleva o homem sobre o homem; e, como o percebem, como sabem medir, melhor do que ninguém, a distância a que ficam do ponto que se tinham destinado, têm um momento de desânimo, uma dúvida sobre a utilidade dos anos gastos, um desespero de, por impossibilidade dos outros, não terem chegado à meta desejada; não valeria mais a pena agrilhoar-se ao mastro grande e vogar direito à sua pátria?
Certamente o podem fazer os que só têm talento, pela perfeita razão de que lhes está vedado qualquer outro caminho; o especialismo filológico ou o especialismo poético ou o especialismo filosófico renunciam a explicar e nem sequer chegam a sentir, na maior parte das vezes, o seu afastamento do comum; se o sentem transformam-no em virtude e para eles talvez seja virtude; um homem de talento, de particular habilidade, atirado para o campo do geral, arrisca-se a nem colher o fruto que as limitações lhe oferecem, nem flutuar no mar da relação.
Mas há mais perfeitas criações; da mão de Deus saiu, num grau mais alto que o talento, a inteligência que permite ao homem regressar até ele; os que a possuem não podem afastar-se das estradas e deixar seguir, na escura noite, por entre as névoas, o bando cego; é neles que reside, por eles que se alcança a redenção de todo o género; descobrem o norte a que rumar e amparam os fracos, levantam os que tombam na marcha; devem tomar como bênção o espinho que os rasga; toda a salvação tem uma cruz; e quanto mais pesada for a cruz, tanto mais valiosa será a salvação.
Agostinho da Silva, Diário de Alcestes
A única salvação do que é diferente é ser diferente até o fim, com todo o valor, todo o vigor e toda a rija impassibilidade; tomar as atitudes que ninguém toma e usar os meios de que ninguém usa; não ceder a pressões, nem aos afagos, nem às ternuras, nem aos rancores; ser ele; não quebrar as leis eternas, as não-escritas, ante a lei passageira ou os caprichos do momento; no fim de todas as batalhas — batalhas para os outros, não para ele, que as percebe — há-de provocar o respeito e dominar as lembranças; teve a coragem de ser cão entre as ovelhas; nunca baliu; e elas um dia hão-de reconhecer que foi ele o mais forte e as soube em qualquer tempo defender dos ataques dos lobos.
Agostinho da Silva, Diário de Alcestes
A primeira condição para libertar os outros é libertar-se a si próprio; quem apareça manchado de superstição ou de fanatismo ou incapaz de separar e distinguir ou dominado pelos sentimentos e impulsos, não o tomarei eu como guia do povo; antes de tudo uma clara inteligência, eternamente crítica, senhora do mundo e destruidora das esfinges; banirá do seu campo a histeria e a retórica; e substituirá a musa trágica por Platão e os geómetras.
Hei-de vê-lo depois de despido de egoísmo, atente somente aos motivos gerais; o seu bem será sempre o bem alheio; terá como inferior o que se deleita na alegria pessoal e não põe sobre tudo o serviço dos outros; à sua felicidade nada falta senão a felicidade de todos; esquecido de si, batalhará, enquanto lhe restar um alento, para destruir a ignorância e a miséria que impedem os seus irmãos de percorrer a ampla estrada em que ele marcha.
Nenhuma vontade de domínio; mandar é do mundo das aparências, tornar melhor de um sólido universo de verdades; se tiver algum poder somente o veja como um indício de que estão ainda muito baixos os homens que lho dão; incite-o o sentir-se superior a mais nobre e rude esforço para que se esbatam e percam as diferenças; não aproveite para mostrar a sua força a fraqueza dos outros; o bom lutador deseja que o combatam mais rijos lutadores.
Será grato aos contrários, mesmo aos que veem armados da calúnia e da injúria; compassivo da inferioridade que demonstram fará tudo que puder para que melhorem e se elevem; responderá à mentira com a verdade e ao ódio com o bem; tenazmente se recusará a entrar nos caminhos tortuosos; se o conseguirem abater, tocará com humildade a terra a que o lançaram, descobrirá sempre que do seu lado esteve o erro e de novo terá forças para a luta; e se o aplaudirem pense logo que houve um erro também.
Agostinho da Silva, Considerações e Outros Textos
Limitamos Deus atribuindo todos os males ao Diabo. Uma infinita bondade e uma infinita justiça, despidas de todo o pensamento que a moral condena, fazem suspeitar que se empregou na construção uma escala demasiado humana; mais uma vez nos julgámos os senhores absolutos do mundo; mais uma vez nos quisemos centro do universo e nos vimos tratados com atenção e carinho especiais. Não ousou o homem pôr a maldade entre os atributos de Deus e pecou primeiramente porque foi estreito; e de novo pecou porque foi tímido. Consolava-o a ideia de uma protecção sempre possível e a mente, que se não levantava ao total, só pôde conceber a explicação infantil e ilógica dos dois demiurgos. Fugimos da aspereza e erguemos um palácio de fadas, esplêndido e seguro, mas enervante e mole; tememos a vida e a vida se vingou.
Restituamos a Deus toda a sua grandeza; reconheçamos o seu poder na violência e no terror; tenhamos por divino o abaixamento destes tempos; emana Caim do espírito supremo – como Abel; não tiremos a Deus o que temos como ideal superior: a vontade de progresso; não o despojemos, por interesse egoísta, do prazer de marchar, não lhe demos em troca da variedade que roubamos a monotonia a que aspira a alma baixa.
E em face de um Deus pleno e terrível sejamos heróicos; cresçam as forças com que lutamos, seja mais larga a compreensão, mais perfeito o amor; enfrentemos o mal, cara a cara, e adoremos o Senhor no inimigo que nos derruba e pisa. Sejamos bravos e tolerantes. Não vacilemos na derrota, nem um instante voltemos costas ao perigo; mas não abusemos da vitória. É este o dom que nos oferece um Deus liberto de cadeias terrestres.
Agostinho da Silva, Textos e Ensaios Filosóficos I