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Gohar vivia na mais estrita economia material. A noção do mais elementar conforto fora nele desde há muito banida da memória. Detestava ver-se rodeado de objectos; os objectos eram os receptáculos dos germes latentes da miséria, e da pior de todas, a miséria inanimada, essa que fatalmente engendra a melancolia por força da sua presença sem saída. Não que ele fosse sensível às aparências da miséria; a esta não reconhecia nenhum valor palpável, para ele constituía tão-só uma abstracção. Apenas desejava proteger o olhar de uma promiscuidade deprimente. O lado nu deste quadro tinha para Gohar a beleza do imperceptível, e ali respirava um ar de optimismo e liberdade. A maior parte dos móveis e dos objectos comuns eram aos seus olhos um ultraje, por não poderem constituir alimento nenhum para a sua necessidade de fantasia humana. Só os seres, nas suas loucuras incontáveis, tinham para ele o dom da diversão.
Albert Cossery, Mendigos e Altivos
(...) Não estarás tu a par do caso das eleições?
- Não, nunca leio jornais.
- Esse não vinha nos jornais. Contaram-mo.
- Diz lá então.
- Ora ouve! O caso passou-se há pouco tempo, numa aldeola do Baixo Egipto, durante as eleições para a junta de freguesia. Quando os funcionários do Governo abriram as urnas, notaram que na maioria dos boletins de voto estava escrito o nome Bargute. Ora os ditos funcionários do Governo não conheciam tal nome, que não figurava na lista de nenhum partido. Inquietos, logo se puseram à cata de informações; e acabaram por saber, pasmados de todo, que Bargute era o nome dum burro por quem toda a gente da aldeia nutria muita estima, por via da sabedoria do animal. quase todos os moradores tinham votado nele. Que me dizes tu a esta história?
Gohar respirou com júbilo; sentia-se extasiado. «São ignorantes e iletrados», disse para consigo, «e no entanto acabam de fazer a coisa mais inteligente conhecida no mundo desde que há eleições.» (...)
- Admirável! - exclamou Gohar. - E como acaba a história?
- É claro, não foi eleito. Estás tu a ver, um burro de quatro patas! O que eles queriam, lá os do Governo, era um burro só de duas patas.
- Por uma história tão maravilhosa, algo mereces, com toda a franqueza. Alegraste-me o coração. Que posso fazer por ti?
- Basta-me a tua amizade - disse o mendigo. - Já sabia que haverias de apreciar.
- Enches-me de honrarias - disse Gohar. - Até um dia destes, assim espero.
Albert Cossery, Mendigos e Altivos