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Em mim o que há de primordial é o hábito e o jeito de sonhar. As circunstâncias da minha vida, desde criança sozinho e calmo, outra[s] forças talvez, amoldando-me de longe, por hereditariedades obscuras a seu sinistro corte, fizeram do meu espírito uma constante corrente de devaneios. Tudo o que eu sou está nisto, e mesmo aquilo que em mim mais parece longe de destacar o sonhador, pertence sem escrúpulo à alma de quem só sonha, elevada ela ao seu maior grau.
Quero, para meu próprio gosto de analisar-me, ir, à medida que isso me ajeite, ir pondo em palavras os processos mentais que em mim são um só, esse, o de uma vida devotada ao sonho, de uma alma educada só em sonhar.
Vendo-me de fora, como quase sempre me vejo, eu sou um inapto à acção, perturbado ante ter que dar passos e fazer gestos, inábil para falar com os outros, sem lucidez interior para me entreter com o que me cause esforço ao espírito, nem sequência física para me aplicar a qualquer mero mecanismo de entretenimento trabalhando.
Isso é natural que eu seja. O sonhador entende-se que seja assim. Toda a realidade me perturba. A fala dos outros lança-me numa angústia enorme. A realidade das outras almas surpreende-me constantemente. A vasta rede de inconsciências que é toda a acção que eu vejo, parece-me uma ilusão absurda, sem coerência plausível, nada.
Mas se se julgar que desconheço os trâmites da psicologia alheia, que erro a percepção nítida dos motivos e dos íntimos pensamentos dos outros, haverá engano sobre o que sou.
Porque eu não só sou um sonhador, mas sou um sonhador exclusivamente. O hábito único de sonhar deu-me uma extraordinária nitidez de visão interior. Não só vejo com espantoso e às vezes perturbante relevo as figuras e os décors dos meus sonhos, mas com igual relevo vejo as minhas ideias abstractas, os meus sentimentos humanos — o que deles me resta —, os meus secretos impulsos, as minhas atitudes físicas diante de mim próprio. Afirmo que as minhas próprias ideias abstractas, eu as vejo em mim, eu com uma interior visão real as vejo num espaço interno. E assim os seus meandros são-me visíveis nos seus mínimos.
Por isso conheço-me inteiramente, e, através de conhecer-me inteiramente, conheço inteiramente a humanidade toda. Não há baixo impulso, como não há nobre intuito que me não tenha sido relâmpago na alma; e eu sei com que gestos cada um se mostra. Sob as más-caras que as más ideias usam, de boas ou indiferentes, mesmo dentro de nós eu pelos gestos as conheço por quem são. Sei o que em nós se esforça por nos iludir. E assim à maioria das pessoas que vejo conheço melhor do que eles a si próprios. Aplico-me muitas vezes a sondá-los, porque assim os torno meus. Conquisto o psiquismo que explico, porque para mim sonhar é possuir. E assim se vê como é natural que eu, sonhador que sou, seja o analítico que me reconheço.
Bernardo Soares, O Livro do Desassossego
A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade de dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do Destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.
A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor vêem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram vêem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.
Por isso a morte enobrece, veste de galas desconhecidas o pobre corpo absurdo. É que ali está um liberto, embora o não quisesse ser. É que ali não está um escravo, embora ele chorando perdesse a servidão. Como um rei cuja maior pompa é o seu nome de rei, e que pode ser risível como homem, mas como rei é superior, assim o morto pode ser disforme, mas é superior, porque a morte o libertou.
Fecho, cansado, as portas das minhas janelas, excluo o mundo e um momento tenho a liberdade. Amanhã voltarei a ser escravo; porém agora, só, sem necessidade de ninguém, receoso apenas que alguma voz ou presença venha interromper-me, tenho a minha pequena liberdade, os meus momentos de excelsis.
Na cadeira, aonde me recosto, esqueço a vida que me oprime. Não me dói senão ter-me doído.
Bernardo Soares, O Livro do Desassossego
A arte livra-nos ilusoriamente da sordidez de sermos. Enquanto sentimos os males e as injúrias de Hamlet, príncipe da Dinamarca, não sentimos os nossos — vis porque são nossos e vis porque são vis.
O amor, o sono, as drogas e intoxicantes, são formas elementares da arte, ou, antes, de produzir o mesmo efeito que ela. Mas amor, sono, e drogas tem cada um a sua desilusão. O amor farta ou desilude. Do sono desperta-se, e, quando se dormiu, não se viveu. As drogas pagam-se com a ruína de aquele mesmo físico que serviram de estimular. Mas na arte não há desilusão porque a ilusão foi admitida desde o princípio. Da arte não há despertar, porque nela não dormimos, embora sonhássemos. Na arte não há tributo ou multa que paguemos por ter gozado dela.
O prazer que ela nos oferece, como em certo modo não é nosso, não temos nós que pagá-lo ou que arrepender-nos dele.
Por arte entende-se tudo que nos delicia sem que seja nosso — o rasto da passagem, o sorriso dado a outrem, o poente, o poema, o universo objectivo.
Possuir é perder. Sentir sem possuir é guardar, porque é extrair de uma coisa a sua essência.
Bernardo Soares, O Livro do Desassossego
A renúncia é a libertação. Não querer é poder.
Que me pode dar a China que a minha a minha alma não me tenha dado? E, se minha alma não pode dar, como dará a China, se é com a minha alma que verei a China, se a vir? Poderei buscar riquezas ao Oriente, mas não riqueza de alma, porque a riqueza de minha alma sou eu, e eu estou onde estou, sem Oriente ou com ele.
Compreendo que viaje quem é incapaz de sentir. Por isso são tão pobres sempre como livros de experiência os livros de viagens, valendo somente pela imaginação de quem os escreve. E se quem os escreve tem imaginação, tanto nos pode encantar com a descrição minuciosa, fotográfica a estandartes, de paisagens que imaginou, como com a descrição, forçosamente menos minuciosa, das paisagens que supôs ver. Somos todos míopes, exceto para dentro. Só o sonho vê com o olhar.
No fundo, há na nossa experiência da terra duas coisas só – o universal e o particular. Descrever o universal é descrever o que é comum a toda a alma humana e a toda experiência humana – o céu vasto, com o dia e a noite que acontecem dele e nele; o correr dos rios – todos da mesma água sororal e fresca; os mares, montanhas tremulantes extensas, guardando a majestade da altura no segredo da profundeza; os campos, as estações, as casas, as caras, os gestos; o traje e os sorrisos; o amor e as guerras; os deuses, finitos e infinitos; a Noite sem forma, mãe da origem do mundo; o Fado, o monstro intelectual que é tudo… Descrevendo isto, ou qualquer coisa universal como isto, falo com a alma a linguagem primitiva e divina, o idioma adâmico que todos entendem. Mas que linguagem estilhaçada e babélica falaria eu quando descrevesse o elevador de Santa Justa, a Catedral de Reims, os calções dos zuavos, a maneira como o português se pronuncia em Trás-os-Montes? Essas coisas são acidentes da superfície; podem sentir-se com o andar mas não com o sentir. O que no Elevador de Santa Justa é universal é a mecânica facilitando o mundo. O que na Catedral de Reims é verdade não é a Catedral nem o Reims, mas a majestade religiosa dos edifícios consagrados ao conhecimento da profundeza da alma humana. O que nos calções dos zuavos é eterno é a ficção colorida dos trajes, linguagem humana, criando uma simplicidade social que é em seu modo uma nova nudez. O que nas pronúncias locais é universal é o timbre caseiro das vozes de gente que vive espontânea, a diversidade dos seres juntos, a sucessão multicolor das maneiras, as diferenças dos povos, e a vasta variedade das nações.
Transeuntes eternos por nós mesmos, não há paisagem senão o que somos. Nada possuímos, porque nem a nós possuímos. Nada temos porque nada somos. Que mãos estenderei para que universo? O universo não é meu: sou eu.
Bernardo Soares, O livro do desassossego