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Às vezes passa-nos despercebido, mas fazer diferente (ou outra coisa) pode simplesmente… ser deixar de fazer. Viciámo-nos em conteúdos, informação, distração, esquecendo que tudo no inconsciente fica e ele é infinito. Somos esponjas. Querendo abarcar tudo, corremos o risco de não abraçar nada. E se não nos precavemos ruminamos as muitas coisas que captamos. As ideias que julgamos muito nossas e muito sólidas bem podem vir do exterior, do muito que ouvimos, do tanto que lemos. Vivemos em ficção, afastados do real. E o Real é o brilho na folha acariciada pelo Sol, a flor exposta ao nosso olhar sossegado, o que verdadeiramente sentimos, pensamos e intuímos. Não está na frase ou ideia que se lê: porque essa é imaginação. Muito útil, sem dúvida, faz parte de aprendizagens e, se bem utilizada, poderá conduzir à realização, mas é preciso muita atenção, alguma vigilância para que ela se não transforme em não-vivência, uma espécie de névoa em que se vaga, quando não caótica e neurótica. A mente sossegada e atenta, mergulhada em concentração aberta, sem aditivos, opiniões, teorias, é, ela própria - mais límpida e mais clara - sábia. Responde ao que precisamos: dirige-nos ao equilíbrio. O nosso equilíbrio, que difere do que é equilibrado e necessário para outro. O jejum da catadupa de informação que consumimos é (ou pode ser) a porta que nos leva a casa: a nossa verdadeira (e intestina) Realidade.
Tive uma ideia genial! Oh, não! Que maravilha vou poder "ver"? Quando é que o cérebro organiza situações, conflitos e emoções, encontrando equilíbrio e restaurando, digamos assim, circuitos mentais? Durante o sono. Portanto, trabalha, ao que parece muito eficientemente, sem a nossa intervenção consciente… É o que reza a ciência de hoje. E nunca te aconteceu pensares muito para encontrar uma solução que resolva um problema e ela surgir precisamente quando não estás focado nessa busca, quando deixaste de pensar e pensar, analisar sem chegar a bom porto? Claro. Como a todos nós. Portanto, para bom entendedor… E no entanto precisaste de pensar para chegar à conclusão de que o cérebro funciona muito bem e só, sem grande necessidade do nosso… pensar! Aí é que está. Andei durante muito tempo, talvez anos, a debruçar-me sobre este assunto. Afinal, precisamos de nos desgastar a pensar sem destino, a controlar cada coisa, cada passo, a somar estratégias, vasculhando tudo e um par de botas e querer à viva força encontrar explicação para cada acontecimento ou basta, salvo seja, deixar as coisas correrem como têm de acontecer, sendo reservado o pensar para as coisas práticas do dia-a-dia, organização de ideias ou prazeroso trabalho intelectual mas sem grande desgaste, ansiedade ou angústia? Pensava e pensava… e ontem apareceu-me a resposta, como se a visse à minha frente, pronta, límpida, sem raciocínio, se isto faz sentido… Até me é difícil explicar. É sentido. Pessoal. E intransmissível, digamos assim, como identidade: cada um tem de “ver para entender”, da sua maneira própria, observar o seu singular funcionamento mental e não entender apenas intelectualmente, de forma mecânica, restrita, de certa forma alheada do sentir. Será que me faço entender? Para bom entendedor…
E hoje, já andaste ebriamente? Solto o corpo, na ausência de mentais preocupações, caminhando numa lassidão firme e alegre? Com rosto vivo desconhecedor de conflitos, antes comunicante e empático, sincero e não bajulador. E sentir na palma do pé a presença da leveza, como quem dança pela vida, internando-se sem pensar na inter-relação que é espaço de invisível abraço. Um andar que não é de arrastamento, viciado de cansaço ou contaminado por desânimo pesado. Num andamento assim: descontraidamente firme, despreocupadamente atento, seriamente comprometido com a melódica dinâmica de se ser.
O que é um milagre? É um prodígio, uma maravilha que se não consegue explicar. O que é, pois, a Vida, senão um milagre? Inexplicável a sua origem, enigmáticos os seus encadeamentos, cuja procura por respostas sempre cairá na teoria, na hipótese não confirmada. Podemos estudar processos, somar descobertas, pensar até à loucura, encontrar curas e remédios, explorar intelectualmente o infinitamente grande e criar instrumentos para tentar captar o infinitamente pequeno, mas todas estas aventuras farão parte do sonho cujo real significado – e funcionamento - nos escapará. É quando a mente se rende a esse não saber, aí vivendo confortavelmente, que pode cessar a busca. E é nessa aceitação-do-que-é-sem-necessidade-de-explicação que a angústia pode perder força e poder. Talvez aí haja semente que rompa a casca – se abra a mente para a faculdade de intuir e deixar-se, eventualmente, diluir no milagre: que é (a) Vida.
Coloquemos as coisas assim: o Ser existe sempre. Está lá, nos diferentes estados de consciência por que passamos diariamente. No sono profundo, quando não sentimos o corpo nem a mente se ocupa com imagens - pelo menos, aparentemente, está ela em inactividade – estamos num estado de paz e felicidade, ausentes as preocupações, do mundo desligados. Embora nada sintamos nem pensemos continuamos a existir, porque, caso contrário, não voltaríamos ao estado acordado. Ao acordar a consciência surge nessa Consciência que sempre esteve lá, sem nome, sem forma, inexplicável, quiça sempiterna. Reaparecem as noções de, os problemas tais, as obrigações ordinárias, os conflitos com, as urgências para, o senso de um “eu histórico”, uma narrativa continuamente a ser escrita na alva página desse Ser que independe da personalidade-roupagem que para nós reclamamos e aos outros mostramos. Se, vindos do sono profundo, ao acordar direccionarmos a atenção para o estado de paz que ele (o sono sem sonhos) permite - ao invés de rápida e apressadamente vestirmos a indumentária dos afazeres, das preocupações, das redes sociais, do correr do mundo - continuaríamos nesse bem-estar, mas despertos para o que o dia nos traz. Dormir acordado, aqui, não significa inactividade, passividade nem desresponsabilização. Faz-se o que sempre se fez – com uma diferença capital: continuamos envoltos em tranqulidade, mais ligados à folha, a página em branco, do que aos borrões que vamos tentando converter em palavras e verbos, essas acções nem sempre oportunas, correctas, racionais ou coerentes e que não raro nos inquieta - quando não adoece.
Nunca sabemos se ao Outro fazemos o bem ou o mal. Podemos beber estoicismos, como por aqui nos últimos dias se tem vertido pela voz do imperador-filósofo: bom sumo de madura fruta. Podemos meditar frequente e amplamente. Podemos nos pendurar em vários ramos na árvore da nossa experiência, quer da curta que é a nossa vida e estada, quer na da humanidade, que é de todos e infinda estrada. Podemos exaustivamente nos examinar. Podemos apenas o que de vulgo sói dizer-se seguir o coração. Podemos achar (ou querer achar) que estamos seguindo na senda da correcção, com lúcida razão, que são as nossas intenções e motivações boas, belas ou sãs. Mas, na verdade, nunca sabemos… se fazemos o mal ou o bem, se o fazemos bem ou mal. Se sabemos o que nos vai nos confins da alma (o que nem sempre é certo), dificilmente saberemos a leitura feita pela alma alheia – a menos que ela, sabendo precisamente o que nela vai, no-lo diga; e, dizendo ela, acreditemos nós por inteiro.
Do Outro desconhecemos a sua vida (e via) interna, os seus mecanismos mentais, as feridas que carrega, as doenças de que padece e delas se alguma – ou todas - projecta, os anseios que o governam, a realidade em que está ou cria, a sua verdade, o entendimento que tem, as sombras e luzes que o visitam, a consciência que o habita… Não nos doa a nós a cabeça de tanto em tudo pensar… No trato com o Outro, resta-nos crer, talvez, na Alma ela-mesma (talvez fosse mais correcto dizer-se Espírito), tentando procurar (e ver) em nós e Nele a pureza essencial. E esperar então que essa tal Alma-mesma, povoando os seres, presumindo-se conhecedora de verdades e mistérios, e sabendo tudo ler, nos envie uma proposta de resposta, em silêncio e em forma de (pres)sentir… não raro falada pelo vento.
Sinto no meu largo peito o teu coração bater. Que aflito estás, Homem! Que medos e desesperos te assolam! Novo, velho te encontras. Velho, jovem sem rumo te queres mostrar. Senta-te aqui ao lado, na minha escada. Nada peças, nada procures, nada queiras. Respira. Fundo. Tudo faz apaixonadamente aberto à incerteza. Vive quieto no presente – é este o momento. Sente a brisa e o perfume da flor que nela se embrenha. Voa com o pássaro e nada no seio de todas as vagas. A onda chega e parte. A maré molha o que o Sol secará. E se ele não fizer evaporar a tua ilusão, o teu inquieto ansiar, permanece firme, sem temor, no teu trémulo desassossegar. Se atento estiveres, verás brilhar a dissolução do teu confuso penar: pensar. Demasiado. Adoentada e desequilibradamente.
… mas não sejamos demasiadamente duros para com o maquinal homem da massa. Não é grande, a sua culpa. Apenas viceja e refocila, sem razão, desde a infância, no condicionamento que recebeu, sem dele se conseguir livrar. Não tendo culpa de se apegar desde o berço, deve ter contudo obrigação de por si pensar e agir, livre do mundo que o ensinou a ser controlado (e controlador), ambicionando mais ser o que todos são em vez de se descobrir. Olhar firme, demorada e conscientemente para o conquistador de plástico que é, agarrado como lapa à rocha em erosão do reconhecimento, gritando fama em qualquer beco ou vão de escada, julgando, febrilmente insano e psicologicamente descompensado, que bens materiais, infindos divertimentos vãos e orgíaco sexo avulso o transportam para os paraísos da felicidade. Muito rico que seja, é pobre. E coitado. Por muito sucesso que tenha, será sempre filho órfão da Graça. Mas da Verdade, a leste quer estar. Avidez, cobiça, desonestidade, hipocrisia, manipulação, mentira, egoísmo, dissimulação, agressividade, violência, poder miúdo, competição: eis o seu parco léxico, consultado no dicionário da sua ignorante desatenção. Desde a infância, se disse, e criança há-de morrer. Não tem força, não sabe lutar, mas na imagem que em si cultiva no confinado ginásio da vida, se tem, um tanto irracionalmente, por inteligente, um espertalhão. A educação que recebe, mais sem efeito do que com, é hoje, talvez mais do que nunca, assente na formatação, um decorar e memorizar inconsequente, contínuo, nauseante, alienante, em nada contribuindo para a formação de espíritos livres, questionadores, mentalmente activos. Tudo é forçado. Tudo é esforço: um esforço que na verdade enfraquece. E pela vida vai rastejando, como pode, como consegue, em busca do que o vizinho, revista ou televisão lhe mostra ser… o que deve querer, como deve ser, como se safar no meio da multidão que (ele próprio) engrossa. É uma papa tudo o que come (e que voraz estômago tem!), já sem a audácia, irreverência, vitalidade e verdadeira inteligência intuitiva presente nos primeiros anos da sua humana condição. Sim, sejamos um pouco mais justos. O que precisa o imberbe homem da massa não é de bordoada nem chibata: urge alguma doce e salutar educação.
Observa bem, ó Homem, não só o teu erro, mas o erro em que, tomado de estupidez, cupidez e ambição, te tornaste! És tu, hoje, ó Homem, uma maligna doença que espalha devastação por toda a Natureza. Exalto com fervores no estômago vazio a ruína do teu mesquinho mundo frenético, febril, insano, sem forma, desordenado. Que mais precisas de ver, quantas mais catástrofes tens de assistir e sofrer? Quantos horrores mais engolir? Quantas valas comuns abrir? Quantas filas de espera de cadáveres em marcha para o fogo eterno são necessárias para saíres da cegueira em que caíste? Olha para os teus satélites: mostram-te, ó trampas deste mundo, que a poluição fenece com o teu sossegar de movimento. É uma doença. Se fosse um meteorito, uma extraordinária explosão solar ou a erupção simultânea de vários vulcões dir-te-ia o mesmo: és nada, és ninguém. Mas vais insistir. Vais continuar. A arrogância, o fanatismo e a destruição correm-te nas veias da tua insensatez e na cabeça cujo endeusado pensamento coroado de insaciável desejo há muito substituiu a verdadeira inteligência. Se ainda nas entranhas e no coração há mínima chama e sentimento, pergunta à fila de cadáveres, aos que a guerra derruba, aos que sofrem a tempo inteiro: que farias tu, ó morto, ó esquecido, de diferente? Eles não são só eles, frios e distantes: eles és tu também.
Cuidado com aqueles que se mostram inchados de certezas. Rebentarão: provavelmente, de estupidez.