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Porque será tão difícil por vezes determinar um percurso a seguir? Creio que a natureza encerra um subtil magnetismo que, se inconscientemente nos rendermos a ele, dará um rumo aos nossos passos. Não nos é indiferente a direcção que seguimos. Existe um caminho certo; mas somos demasiado propensos, por estupidez ou distracção, a seguir o caminho errado. De bom grado seguiríamos um caminho que nunca antes percorrêramos neste mundo, um perfeito símbolo do percurso que nos aprazeria percorrer num mundo ideal e interior; e, por vezes, é-nos sem dúvida difícil escolher um rumo, uma vez que ainda não temos dele uma noção clara.
Henry David Thoreau, Caminhada
Sobretudo, não podemos dar-nos ao luxo de não viver no presente. Entre todos os mortais, abençoado é aquele que não perde um instante a relembrar o passado. É anacrónica a filosofia que não nos manda escutar o cantar do galo nos celeiros das redondezas. Esse som relembra-nos geralmente que estamos a enferrujar e a ficar antiquados nas nossas ocupações e hábitos do pensamento. Já a filosofia desse abençoado homem se resume a um tempo mais moderno do que o nosso. Há algo que ela sugere que é um testamento mais novo - o evangelho segundo o momento presente. Não ficou na retaguarda; levantou-se cedo e começou cedo o dia, e estar onde ele está é viver na altura certa, nas primeiras fileiras do tempo. É expressão do carácter sadio e do vigor da Natureza, uma vanglória para o mundo - a salubridade de um regato que corre, uma nova fonte de Musas, e que celebra o instante que passa. Onde reside este carácter salutar não se aprovam leis que condenam escravos fugitivos. Quem não traiu muitas vezes o seu amo depois de ter ouvido o cantar do galo?
O mérito do canto deste pássaro reside em ser alheio a todo o queixume. O cantor pode facilmente comover-nos até às lágrimas ou fazer-nos rir, mas quem é capaz de despertar em nós a pura alegria da manhã?
Henry David Thoreau, Caminhada
"Diz-se na Nova Inglaterra que cada vez menos pombos nos visitam todos os anos. As nossas florestas não têm poisos para eles. Assim, ao que parece, também cada vez menos pensamentos visitam cada adolescente todos os anos, pois os arvoredos das nossas mentes jazem devastados - destruídos para alimentar as inúteis fogueiras da ambição, ou vendidos como lenha -, e já quase não há um ramo onde possam poisar. Já não constroem ninhos nem se multiplicam entre nós. Numa estação mais suave, talvez uma débil sombra paire sobre a paisagem do pensamento, nas asas de algum pensamento na sua migração primaveril ou outonal, mas, olhando para os céus, somos incapazes de detectar a própria substância do pensamento. Os nossos alados pensamentos convertem-se em aves domésticas. Já não voam nas alturas e só almejam o esplendor de uma galinha-chinesa ou de uma conchichina. Esses gra-a-a-andes pensamentos, esses gra-a-a-andes homens de que ouvis falar!"
Henry David Thoreau, Caminhada
Há algo servil no hábito de invocar uma lei a que devemos obedecer. Podemos estudar as leis que importam por conveniência própria, mas uma vida proveitosa não conhece leis. É decerto uma descoberta infeliz saber que uma lei nos subjuga de formas que desconhecíamos. Vivei em liberdade, filhos da névoa - e no que diz respeito ao conhecimento nós somos todos filhos da bruma. O homem que escolhe viver em liberdade é superior a todas as leis, em virtude da sua relação com o legislador. «É um dever activo», afirma Vishnu Purana; «É o que não é pela nossa servidão que nos liberta; todos os outros deveres apenas entediam; todos os outros conhecimentos são apenas fruto da habilidade de um artista.»
Henry David Thoreau, Caminhada
Temos ouvido falar da Sociedade para a Difusão do Conhecimento Útil. Diz-se que saber é poder, ou coisa semelhante. Parece-me que é igualmente necessária uma Sociedade para a Difusão da Ignorância Útil, algo que apelidarei do Conhecimento Belo, um conhecimento útil num sentido mais elevado, pois o que é a maioria do nosso elogiado e pretenso conhecimento senão a presunção de que sabemos algo, que nos priva das vantagens da nossa verdadeira ignorância? Aquilo a que chamamos conhecimento é muitas vezes a nossa real ignorância; e a ignorância, o nosso duvidoso conhecimento. após longos anos de aturadas diligências e de leituras de jornais - porque o que são as bibliotecas científicas senão compilações de jornais? -, um homem reúne uma miríade de factos, arruma-os na memória e, depois, em alguma primavera da sua vida, deambula pelos Grandes Campos do conhecimento, ou seja, começa a pastar como um cavalo e liberta-se de todos os arreios que repousam no estábulo. Daria por vezes o seguinte conselho à Sociedade para a Difusão do Conhecimento Útil: «Ide pastar na relva. Já comeram palha que bastasse.» Chegou a Primavera com as suas verdes colheitas. Até as vacas são conduzidas para as suas pastagens rurais antes do fim de Maio; embora tenha ouvido falar de um agricultor excêntrico que mantinha a sua vaca no celeiro e que lhe dava palha a comer todo o ano. É desta forma que a Sociedade para a Difusão do Conhecimento Útil trata geralmente o seu gado.
A ignorância do homem por vezes não é só útil, mas bela, ao passo que os seus pretensos conhecimentos são geralmente piores do que inúteis, além de serem coisa feia. Com que homem preferimos lidar: com aquele que nada sabe sobre um assunto e, algo extremamente raro, sabe que nada sabe, ou com aquele que sabe alguma coisa sobre dado assunto, mas julga que sabe tudo?
A minha ânsia de conhecimento é intermitente, mas a minha sofreguidão por banhar a cabeça em atmosferas que os meus pés desconhecem é perene e constante. A coisa mais elevada a que podemos aspirar não é o Conhecimento, mas a Compreensão pela Inteligência. Não sei se este conhecimento superior se resume a algo mais definitivo do que um romance ou uma surpresa sobre a súbita revelação a insuficiência de tudo a que antes chamámos Conhecimento - a descoberta de que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. É como o sol que desfaz a neblina. O homem não pode saber em grau mais elevado, tal como não pode encarar serenamente e com impunidade a face do sol. «Não podereis compreendê-lo como quem compreende um pormenor», diziam os oráculos caldaicos.
Henry David Thoreau, Caminhada
Enche-me de júbilo que os cavalos e os bezerros tenham de ser domesticados antes de serem escravos do homem, e que os próprios homens tenham ainda uma vida pândega enquanto jovens antes de se tornarem membros submissos da sociedade. Sem dúvida, nem todos os homens são igualmente civilizáveis; e lá porque a maioria, como os cães e as ovelhas, é dócil por uma disposição inerente, não há razão para dominar os outros e para estes se vergarem e se baixarem ao mesmo nível. Os homens são em essência semelhantes, mas foram concebidos em grande número para serem diferentes. Quando se trata de cumprir uma vulgar tarefa, um homem sair-se-á tão bem como outro; mas, no caso de um propósito elevado, deve atender-se à excelência individual. Qualquer homem sabe tapar uma fenda por onde entra o frio, mas nenhum outro homem poderia servir uso tão raro como o autor deste exemplo. Confúcio disse: «O pêlo do tigre e do leopardo, quando é curtido, é como a pelagem do cão e da ovelha.» Mas não compete a uma verdadeira cultura domar tigres, nem tornar ovelhas ferozes; e curtir a pele do tigre para dela fazer sapatos não é o melhor uso que se lhe pode dar.
Henry David Thoreau, Caminhada
Dai-me por amigos e vizinhos homens selvagens, e não gente civilizada. A brutalidade do selvagem não é senão um pálido sinal da ferocidade terrível que preside à sociabilidade entre os homens e entre os amantes,
Gosto de presenciar os animais domésticos a reafirmarem os seus direitos nativos - um sinal de que não perderam completamente os seus hábitos selvagens e o vigor original; por exemplo, quando vejo uma vaca do meu vizinho escapar-se do pasto no começo da Primavera e nadar corajosamente pelo rio, um caudal frio e cinzento, com vinte e cinco ou trinta varas de largura, avolumado pela neve derretida - é a travessia do búfalo no Mississípi. Esta proeza confere a meu ver uma certa dignidade ao rebanho. As sementes do instinto são preservadas por tempo indeterminado sob o espesso couro dos cavalos e do gado, quais sementes nas entranhas da terra.
Henry David Thoreau, Caminhada
Os hindus imaginavam que a Terra estava assente num elefante, que por sua vez jazia sobre uma tartaruga, e esta sobre uma serpente; e, embora seja talvez uma coincidência irrelevante, não será descabido referir a este propósito que um fóssil de tartaruga suficientemente grande para suportar um elefante foi recentemente descoberto na Ásia. Confesso que sou parcial no que toca a estas extravagantes fantasias, que transcendem a ordem do tempo e da evolução. São as mais sublimes recriações do intelecto. A perdiz adora ervilhas, mas não aquelas com que há-de ir parar ao prato.
Henry David Thoreau, Caminhada
A mitologia é a colheita do Novo Mundo antes de se ter exaurido o seu solo, antes de a fantasia e a imaginação serem afectadas por pragas, e ainda hoje é fértil, onde quer que o seu o seu vigor se mantenha intacto. Todas as outras literaturas resistem apenas como o olmo sobranceiro às nossas casas; mas a mitologia é como um grande dragoeiro das Antilhas, tão velho como a humanidade e, quer assim seja quer não, resistirá tempo igual, pois é a decadência de outras literaturas que forma o solo em que a literatura floresce.
Henry David Thoreau, Caminhada
Quando quero distrair-me, procuro o bosque mais sombrio, o mais cerrado e interminável e, aos olhos de qualquer cidadão, o mais medonho. Entro num pântano como se fosse um local sagrado - um sanctum sanctorum - É nele que se encontram a força e a essência da Natureza. O bosque selvagem cobre a terra virgem - e este mesmo solo é bom para os homens e para as árvores. A saúde do homem requer tantas jeiras de prado para a sua preservação como a sua quinta exige montes de esterco. Existem nelas os fortes alimentos do que se nutre. Uma cidade é salva não tanto pelos seus honestos habitantes, mas pelos bosques e pântanos que a rodeiam. Uma cidade onde uma sobranceira floresta primitiva ondula e onde outra floresta primitiva se decompõe no subsolo tem condições para produzir não só cereais e batatas, mas também poetas e filósofos para as gerações vindouras. Em semelhante solo cresceram Homero, Confúcio e outros que tais, e é dessa natureza selvagem que proveio o Reformador que comia gafanhotos e mel silvestre.
Henry David Thoreau, Caminhada