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Vou dizer como foi: aluguei uma casa. Só tinha uma cama para pôr lá dentro, nada mais. Bom. Alguns livros e um gira-discos. Sim. Pois meti tudo isso dentro da casa. Vê-se como sobravam quartos? Pus-me a andar pela casa, entrando e saindo dos quartos. Que se passava? Não compreendi logo. Parecia-me que sempre fizera aquilo, nunca na vida fizera nada senão andar numa casa vazia, de quarto para quarto, ao longo de corredores. Não, não é simbólico. A não ser no sentido em que tudo é simbólico. Aconteceu. Comecei então a escrever aquilo mesmo. A escrita foi-me conduzindo a outro tempo, um tempo simétrico. À matéria cristalográfica do tempo. Na infância havia uma casa onde eu andara sempre, por corredores e quartos. Como direi? Escrevendo, descobrira que cada facto ocorrido hoje correspondia a outro ocorrido na infância. Mas isso era também outra coisa. Verifiquei por exemplo que, ao escrever sobre o passado, eu o atraiçoava, revelando-o apenas como visão presente. Assim, a experiência é mantida como hipótese de investigação que acolhe sempre a dúvida, ou dela se alimenta. Relatos de sonhos, veja-se, tornam-se mais seguros que relatos de acontecimentos. O sonho pode propor uma explicação exemplificativa do facto que se narra. As relações entre as diversas partes desta realidade descontínua são esquivas, móveis, ambíguas.
Compreende-se que tipo de escrita implica tal investigação? E, depois, o género de materiais que poderia utilizar? Recorri à parábola, à alegoria, à metáfora. A realidade do registo é garantida pela convicção das hipóteses, pelo tecido plausível dos enigmas.
Convinha a proliferação dos planos de tempo. Acumulei estratos. Importava encontrar uma tensão central, instalar-se nela. Poder-se-ia então correr todos os riscos, pois existia uma zona sólida aonde regressar, e de onde partir de novo. Era a minha segurança.
Trata-se de «escrita circular», naquele âmbito em que se concebe a volta ao ponto de partida. E também porque nenhuma solução é possível, por nunca se poder provar a hipótese de verdade da coisa escrita. O texto é fechado. Mas também aberto. Fechado sobre si, pois o máximo e o melhor seria experimentar, dentro do mesmo espaço, uma nova maneira de considerar os mesmos acontecimentos. Aberto, porque as possibilidades desta consideração se mostravam praticamente sem número.
Desapareceu por volta de 1960. Uma data, o fim da juventude. Houve uma escrita que designava e consignava uma experiencia e era, mal sabia eu, um aviso do tempo e do mundo: fim da tua parte de juventude. Soube no fim da juventude - e de que estranha maneira! - que ela se completara, e se abria uma nova possibilidade. E estava acabada, acabada.
Tudo isto é em si mesmo fácil, mas é tão difícil.
Escrevi em torno de três ou quatro tópicos, e estava a escrever sobre toda a minha juventude, e a sua morte, e a sua significação (se a havia). Enfim, está lá, acabou-se.
Cada texto possui o seu natural movimento interior. Há uma escrita que corresponde ao ritmo brusco, obsessivo, repetitivo, suspenso, recorrente, problemático, descontínuo da investigação que ela mesma, escrita, é - e da realidade que cria.
Certas obsessões (até vocabulares) iluminam-se durante a realização de um texto. A escrever é que se aprende o que somos. Referências a objectos, situações, movimentos, aparecem como imagens ou metáforas de experiências muito antigas, como elementos da composição interior, portanto: do mundo, da vida.
A experiência é uma invenção.
Sou o registo vivamente problemático. A memória é improvável. A biografia é uma hipótese cuja contradição não esgoto. E quando uma criatura não atinge as garantias da sua criação, não encontra provas da sua existência. Poderia escrever cem relatos diversos. Neste sentido seriam todos falsos. Mas seriam verdadeiros por serem todos uma invenção viva.
A realidade é apenas o que se propõe como tal. Mas devemo-nos munir sempre de uma ironia que coloque dubitativamente a nossa mesma proposta. A vida assenta na tensão que as desavindas propostas de verdade estabelecem entre si.
Ninguém acrescentará ou diminuirá a minha força ou a minha fraqueza. Um autor está entregue a si mesmo, corre os seus (e apenas os seus) riscos. O fim da aventura criadora é sempre a derrota irrevogável, secreta. Mas é forçoso criar. Para morrer nisso e disso. Os outros podem acompanhar com atenção a nossa morte. Obrigado por acompanharem a minha morte.
Nada fornece qualquer garantia a ninguém. Existimos em suspensão. Há muitas maneiras de respirar e deixar de respirar. Temos os nossos ritmos. É preciso viver e morrer com eles.
Herberto Helder, Photomaton & Vox
Sei que me não é dado ainda compreender esta coisa que transformaria o meu destino: uma vida louca e rigorosa.
Herberto Helder, Photomaton & Vox
O que os poetas provam é que é preciso uma imagem para revelar que a realidade não existe.
Herberto Helder, Photomaton & Vox
Olhe-se Rimbaud: «On n'est pas sérieux, quand on a dix-sept ans». E quando se tem quarenta e dois? Aos dezassete pode, por exemplo, expor-se a desenvoltura impertinente; escrevo para compreender, ou modificar, ou salvar o mundo. Nada sério, claro. Mas aos quarenta e dois é-se tão pouco sério que convém evitar superlativos da candura exercida com tanto impudor. Respondemos que é «porque sim». Uma vez julguei que escrevia por não saber mais nada. Mas acaso faço ou fiz eu isso melhor ou pior do que outra qualquer coisa que fiz ou faria? Olhando para os meus polegares com aquela ociosa, sempre e ainda desesperada, e remediadamente desenvolta, e apesar de tudo agressiva indiferença com que afastamos de nós o que nunca ganhámos, resolvo ser inequívoco (se é que se pode sê-lo) a respeito de tudo: escrevi porque tinha um problema de ódio a resolver. A hipotética beleza convicta da metáfora que é o poema resume-se ao equilíbrio interno de uma estratégia com destino à eficácia. Ódio. Se um poema pudesse matar, como de facto deveria matar, eu estaria cercado por uma boa putrefacçãozinha humana. E - ao contrário do que aconteceria no caso de revólveres e gravatas - com a penitência para os outros, longe. Mas o poema não mata, ninguém é nele mais que suburbano. Resolve a gente ao menos o problema na internidade biográfica? Tudo para adiar, imagine-se. Adiar horizontalmente, sobre as idades pessoais, o mundo. E falam de seriedade! E vem aquele com os seus dezassete anos! Adiar. Então chega-se aos quarenta e dois (...). Mas digo: nunca se tem quarenta e dois anos nem cem nem mil, nunca. Portanto, cautela. É sempre tempo de rebentar, sempre ódio, sempre crime, ou suicídio, ou loucura (...)
Herberto Helder, Photomaton & Vox
Enfim, uma pessoa não se embebeda somente para as miúdas perversões da memória, para a obliquidade de invenções avulsas, a trivialidade dos equívocos da emoção. Chateia-me ser um pequeno monstro sensível. «Merda», disse eu, «tenho uma cabeça firme. Não me vou deixar apanhar por tentações biográficas, a memória, os mitos que as culturas, marginais ou não, parecem querer que eu adopte. Não sou um símbolo da imaginação alheia.» «Bebe», respondeu o amigo. «Não bebo mais, estou farto, vou-me embora para um lugar onde ninguém me mexa nem eu me possa mexer muito, estou cansado de me mexer.» Depois apareceram as pessoas que ajudam, que têm planos para a nossa glória. Comecei a ter medo. Então fiz a mala. «Merda, merda, merda», sibilava baixinho. Esta é realmente a minha embaraçosa chegada à maturidade. Não serve para espectáculo nem dá nada como exemplo ou símbolo. Tenho de inventar a minha vida verdadeira.
Herberto Helder, Photomaton & Vox
Fala-se para estar só, ser contra os outros, limitar a invasão do mundo - dessas ruas e casas, dessa população de funcionários angélicos. Não me venham com inocências nem sabedorias.
Herberto Helder, Photomaton & Vox
(...)
A minha força é a desordem.
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Herberto Helder, Photomaton & Vox
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Nunca digas o meu nome se esse nome não for o do medo.
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Herberto Helder, Photomaton & Vox