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06.04.20

 

E estava alcançada esta coisa grande e única: tinha-se deixado cair. Não era necessário que fosse na água e na morte que se deixasse cair, do mesmo modo se poderia ter deixado cair na vida. Mas isso não era importante, nada havia a perder. Ele regressaria, ele tornaria a viver. E já não precisaria então do suicídio, nem de nenhum daqueles estranhos rodeios, nenhuma daquelas penosas e dolorosas tolices: teria já vencido a angústia.

Maravilhoso pensamento: uma vida sem angústia! Superar a angústia era a bem-aventurança, era a redenção. Como ele sofrera de medo toda a vida e agora, quando a morte já o estrangulava, não sabia o que isso era, nem angústia, nem pavor, só sorriso, só redenção, só concordância. Reconheceu, de repente, o que era a angústia e como só poderia ser superada por quem a tivesse conhecido. Tinha-se medo de milhares de coisas, de dores, de juízes, do próprio coração, tinha-se medo de adormecer, medo de acordar, medo da solidão, da loucura, da morte – especialmente dela, da morte. Mas tudo eram máscaras e disfarces. Na realidade, só uma coisa havia de que se tinha medo: do deixar-se cair, do passo incerto, do pequenino passo para além de todas as garantias. Quem uma vez, uma única vez se entregasse, quem uma vez tivesse confiança e se abandonasse ao Destino, esse ficaria liberto. Não obedeceria mais a lei do mundo, cairia no espaço universal e mover-se-ia no curso das constelações. Assim era. E era tão simples que qualquer criança podia compreender.

Klein não pensou isto como quem raciocina; viveu, sentiu, apalpou, cheirou, viu e compreendeu o que era a vida. Viu a criação do mundo, viu o fim do mundo, ambos como duas hostes, permanentes em marcha uma contra a outra, mas sempre a caminho, sem repouso. O mundo nascia e morria continuamente. Cada vida era um sopro exalado por Deus. Cada morte um sopro da respiração divina. Quem aprendesse a não resistir, a deixar-se cair, morria facilmente e facilmente nascia. Quem resistisse, sofria angústia, a morte ser-lhe-ia difícil e nascia contra vontade.

Na escuridão cinzenta da chuva, sobre o lago nocturno, viu, ao submergir-se, reflectido e representado o jogo do mundo: sóis e estrelas rolavam subindo e rolavam descendo, coros de homens e animais, espíritos e anjos defrontavam-se, cantavam, calavam, gritavam; multidões lutavam umas contra as outras, cada ser desconhecendo-se a si próprio e odiando-se e perseguindo-se a si em cada um dos outros. A ânsia de todos era a morte, o repouso, o alvo de todos era Deus, o regresso a Deus, a permanência em Deus! Esse alvo era criador de angústia, porque era erro. Não havia permanência em Deus! Não havia repouso! Havia só o eterno fluxo e refluxo, criação e dissolução, nascimento e morte, partida e regresso, sem pausa, sem fim. E por isso havia uma só arte, só uma doutrina, só um mistério: deixar-se cair, não resistir à vontade de Deus, não se agarrar a nada, nem ao Bem nem ao Mal. Era a redenção, só então se estaria liberto do sofrimento e da angústia.

A vida desenrolava-se como uma região de florestas, vales e aldeias contemplada do cimo de uma alta montanha. Tudo tinha sido bom, simples e bom, e tudo se tornara, pela sua angústia e pela sua resistência, em torrente e confusão, em medonho remoinho e convulsão de miséria e desgraça. Não havia mulher sem a qual se não pudesse viver, e também não havia nenhuma com quem se não pudesse viver. Não havia coisa alguma, no mundo, que não fosse tão bela, tão desejável, tão capaz de dar felicidade como o seu contrário. Era bem-aventurado viver, era bem-aventurado morrer, desde que se estivesse só no universo. Repouso vindo do exterior não havia. Nem repouso no cemitério, nem repouso em Deus, nem sortilégio algum jamais interrompia a eterna cadeia do nascimento, a infinita sucessão do respirar de Deus. Mas havia repouso no próprio íntimo. Chamava-se: deixa-te cair! Não te defendas! Morre com gosto! Vive com gosto!

Hermann Hesse, Ele e o Outro

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