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No barbeiro (9)

Thomas

Estou a ficar tremendamente velho. Já me é quase tão difícil escrever como andar. Faço tudo devagar. Não consigo mais do que umas quantas frases por dia. E há poucos dias desmaiei. Suponho que o fim esteja próximo. Foi enquanto estava sentado a resolver um problema de xadrez. De repente, senti-me extenuado. Como se a própria vida se fosse desvanecendo. Não doía. Era apenas um pouco incómodo. E depois devo ter desmaiado, pois voltei a acordar com a cabeça no tabuleiro de xadrez. Reis e peões derrubados. Exactamente como gostaria de morrer. Mas isso talvez seja pedir demasiado, poder morrer sem dor. Se ficasse doente com dores terríveis e sentisse que a doença e as dores tinham vindo para ficar, seria simpático ter um amigo que me ajudasse a entrar no nada eterno. É certo que as leis o proíbem. Desgraçadamente as leis são conservadoras. De modo que os médicos prolongam a dor de uma pessoa, mesmo quando sabem que não há esperança. Chama-se a isto ética médica. Mas ninguém se ri. As pessoas que têm dores não se costumam rir. O mundo não é misericordioso. Diz-se que durante as grandes purgas na União Soviética se matavam os condenados à morte com um tiro na nuca a caminho das celas onde iriam aguardar pela sua execução. De repente, sem aviso prévio. Para mim isso era um lampejo de humanidade no meio de toda aquela miséria. Mas o mundo protestou: ao menos deviam ter o direito de morrer cara a cara com o pelotão de fuzilamento. O humanismo religioso tem mais que um cambiante de cinismo, bem, o humanismo em geral.

Mas como disse, acordei com a cara entre as peças de xadrez. Tirando isso, foi quase como acordar de um sono normal. Estava um pouco aturdido. Apesar disso, apenas me ocorreu voltar a colocar as peças no lugar. Mas era incapaz de me concentrar para resolver o problema. Estava a ponto de me sentar junto à janela quando tocaram à porta. Não vou abrir, pensei eu. Deve ser um evangelista a querer fazer-me acreditar na vida eterna. Têm proliferado muito ultimamente. Parece haver um surto de superstição. Mas voltaram a tocar e fiquei na dúvida. Eles costumam tocar apenas uma vez, apesar de tudo. De maneira que gritei “um momento” e fui abrir a porta, o que demorou algum tempo. Era um rapaz. Estava a vender rifas para a banda de música da escola local. Os prémios eram uma chacota não intencional para os velhos. Bicicleta, mochilas, botas de futebol e coisas desse tipo. Mas não quis parecer indiferente e comprei-lhe uma rifa. Isto apesar de não gostar daquelas bandas. Mas tinha deixado a carteira dentro da cómoda, por isso tive de lhe pedir para entrar. Caso contrário, aguardava-o uma longa espera. Ele veio atrás de mim. De certeza que nunca havia andado tão devagar. A caminho do quarto, tentei fazer passar o tempo perguntando-lhe que tipo de instrumento tocava. “Bem, não sei”, disse ele. Pareceu-me uma resposta estranha, mas supus que estivesse envergonhado. Eu tinha idade para ser bisavô dele. Talvez até fosse. Sei que tenho muitos bisnetos, mas não conheço nenhum deles. “Doem-te muito as pernas?”, perguntou o rapaz. “Não, o que acontece é que já estão muito velhas”, respondi. “Ah, está bem”, disse ele, provavelmente mais descansado. Tínhamos chegado à cómoda e dei-lhe o dinheiro. E então tive um ataque de sentimentalismo. Achei que o rapaz tinha perdido tanto tempo para vender uma só rifa que decidi comprar-lhe mais outra. “Não é necessário”, disse ele. Nesse instante senti uma tontura enorme. O quarto começou a andar à roda. Tive de agarrar-me à cómoda e a carteira caiu ao chão ainda aberta. “Uma cadeira”, disse eu. Assim que ma deu, o rapaz pôs-se a apanhar as moedas que estavam espalhadas pelo chão. “Obrigado, rapaz”, disse eu. “De nada”, respondeu. Poisou a carteira em cima da cómoda, olhou-me muito sério e disse: “Nunca sais?” Nesse momento dei-me conta de que a última vez que saíra devia ter sido a última. Não quero correr o risco de desmaiar no passeio. Isso significaria hospital ou lar de idosos. “Já não”, respondi. “Oh”, disse ele, de um modo que me fez ficar sentimental de novo. Tornei-me num velho palerma. “Como te chamas”, perguntei, e a resposta apenas fez piorar as coisas. “Thomas.” Naturalmente, não quis dizer-lhe que tinha o mesmo nome, mas deixou-me num estado de ânimo muito estranho, quase solene. Bem, não era de estranhar, pois os sinos tinham acabado de dobrar por mim, por assim dizer. Então, de repente, ocorreu-me dar ao rapaz alguma coisa que o fizesse lembra-se de mim. Já sei, já sei, mas eu não estava em mim. De maneira que lhe pedi que fosse buscar a velha coruja talhada que estava em cima da estante dos livros. “Isto é para ti”, disse eu, “é ainda mais velho do que eu”.”Oh, não”, disse ele, “porquê?” Por nada, meu rapaz, por nada. E obrigado pela tua ajuda. Fecha bem a porta quando saíres, por favor. “Muito obrigado.” Acenei-lhe com a cabeça. Depois saiu. Parecia contente. Mas talvez estivesse apenas a fingir.

Desde então tenho tido mais ataques de tonturas. Mas coloquei as cadeiras em pontos estratégicos. O quarto parece miseravelmente desordenado assim. Dá a impressão de quase não estar habitado. Mas ainda vivo aqui. Vivo e espero.   

Kjell Askildsen, conto incluído na colectânea Um Repentino Pensamento Libertador        

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O tumulto (8)

No barbeiro

Há já muitos anos que deixei de ir ao barbeiro, o mais perto fica a cinco quarteirões daqui, o que se tornou bastante longe com o passar do tempo, mesmo quando o corrimão das escadas ainda não estava partido. Mas o escasso cabelo que me resta posso cortá-lo sozinho, e é isso que faço, quero conseguir olhar-me no espelho sem ficar demasiado deprimido, e também arranco sempre os pêlos mais longos do nariz.

Mas um dia, há menos de um ano, e por razões que não me quero alongar aqui, sentia-me particularmente só e passou-me pela cabeça ir cortar o cabelo, apesar de não estar nada comprido. Verdade seja dita que tentei convencer-me a não ir, é demasiado longe para ir a pé, disse a mim mesmo, as tuas pernas já não dão para isso, vais demorar pelo menos três quartos de hora a ir, e outro tanto a voltar. Mas de nada serviu. E depois?, respondi, tenho tempo de sobra, tempo é a única coisa que tenho de sobra.

De modo que me vesti e saí. Não tinha exagerado, demorou bastante tempo; nunca ouvi falar de alguém que ande tão devagar quanto eu, é um tormento, teria preferido ser surdo-mudo – pois de que vale ouvir, e para quê falar, quem ouve, e há ainda alguma coisa por dizer? Bem, haver há, mas quem ouve?

Por fim cheguei. Abri a porta e entrei. Oh, como o mundo muda. Lá dentro estava tudo diferente, apenas o barbeiro era o mesmo. Cumprimentei-o, mas não me reconheceu. Foi uma decepção, embora, naturalmente, tenha agido como se nada fosse. Não havia nenhuma cadeira livre. Eram três pessoas a fazer a barba ou a cortar o cabelo, outras quatro esperavam, e não havia nenhuma cadeira livre. Eu estava muito cansado, mas ninguém se levantou, aqueles que estavam à espera eram demasiado novos, não sabiam o que quer dizer velhice. Então virei-me para a janela e fiquei a olhar para a rua, fazendo de conta que era isso que queria, para que ninguém sentisse pena de mim. Aceito a cortesia, mas a compaixão podem guardá-la para os animais. Tenho visto com demasiada frequência – embora seja verdade que já faz algum tempo, mas ter-se-á o mundo tornado mais humano entretanto? -, tenho visto com demasiada frequência como os mais novos passam com total indiferença por cima de pessoas desamparadas estendidas no passeio, mas que mal metem a vista num gato ou cão feridos, derretem-se-lhes os corações. “Pobre cão”, dizem, ou “Gatinho, coitadinho, estás ferido?” Oh, há muitos amantes dos animais!

Afortunadamente não tive de ficar em pé mais do que cinco minutos, e foi um alívio poder sentar-me. Mas ninguém falava. Outrora, noutros tempos, o mundo inteiro, do lugar mais próximo ao mais longínquo, era atraído para dentro da barbearia. Agora reinava o silêncio, tinha feito todo aquele caminho em vão, já não existia mundo algum de que se quisesse falar. De modo que ao cabo de algum tempo decidi levantar-me e sair. Que sentido fazia continuar ali? O meu cabelo afinal nem sequer estava comprido. E ainda poupei dinheiro, de certeza que me teria custado umas boas coroas. Então caminhei os muitos milhares de pequenos passos até casa. Oh, o mundo está a mudar, pensei eu. E o silêncio a alastrar. É hora de morrer.

Kjell Askildsen, conto incluído na colectânea Um Repentino Pensamento Libertador    

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O corrimão (7)

O tumulto

Quando leio ou estou ocupado a resolver um problema de xadrez, costumo sentar-me junto à janela olhando para a rua. Nunca se sabe se vai acontecer algo que mereça a pena presenciar, apesar de ser pouco provável; a última vez foi há três ou quatro anos. Mas as coisas do dia-a-dia também podem oferecer um pouco de distração, e há sempre pelo menos uma ou outra coisa a mexer fora da janela, enquanto aqui dentro só mesmo eu e o ponteiro do relógio.

Mas há três ou quatro anos vi algo estranho, e foi a última coisa extraordinário que vi, embora, como já disse, não seja indiferente às ocorrências mais vulgares, por exemplo, pessoas que se envolvem em brigas, trocando socos e pontapés, ou gente que cai no passeio e que não se levanta por estar demasiado bêbeda ou doente para encontrar o caminho de casa, se é que a têm; muitos deles suponho que não a têm, não há casas suficientes no mundo.

Mas o que vi daquela vez foi diferente. Deve ter sido na Páscoa ou no Pentecostes, porque não era Inverno, e lembro-me de ter pensado que uma manifestação daquele tipo estaria muito provavelmente relacionada com uma das festas religiosas.

A minha janela dá para uma travessa, tão curta que a posso ver inteira sem a mínima dificuldade, tenho boa vista.

Estava sentado a olhar para duas moscas que copulavam no parapeito da janela, de modo que o mais provável era ser Pentecostes, servia-me um pouco de distração observá-las, embora praticamente não se movessem. Não me excitei ao observá-las, como me recordo que acontecia quando era mais novo – oh, recordo-me muito bem.

Seja como for, ali estava eu sentado a observar as duas moscas, e tinha acabado de tocar levemente na asa da fêmea e depois na do macho sem que dessem conta de nada, o que me pareceu estranho, porque o macho estava em cima da fêmea há pelo menos dez minutos, não estou a exagerar. Devia ter dedicado mais tempo da minha vida a estudar insectos, se bem que, na realidade, para quê? Bem, mas foi nesse momento que avistei um homem na ponta mais distante da rua, um homem que se comportava de forma muito suspeita. Era como se estivesse a bater os braços, e então gritou qualquer coisa, algo que no início não entendi. De certa forma, era um homem sistemático e com um peculiar sentido de ordem espacial, pois caminhava ou corria desde a primeira janela do lado direito da rua até à primeira janela do lado esquerdo, e assim por diante, batendo em todas as janelas antes de gritar qualquer coisa. Era fora do comum e estranho, e então abri a janela, foi antes de se estragarem as dobradiças, e ouvi-o gritar: “Jesus chegou.” Mas também gritava mais qualquer coisa, algo parecido com “Eu cheguei”. E quando se aproximou, pude ouvir que estava certo, era isso que gritava. “Jesus chegou, eu cheguei.” E não parava de correr de um lado para o outro da rua, batendo em todos os vidros das janelas que podia alcançar. Era um espectáculo revoltante, a loucura religiosa é revoltante.

A primeira reacção foi tão surpreendente quanto apropriada: Do alto de um quarto piso, saiu disparado um tamborete que aterrou algures no meio da rua. Não lhe acertou, o que, espero, não era sequer a intenção, mas desfez-se em pedaços, claro. Foi um esforço inglório, pois apenas fez o homem vociferar ainda mais, talvez lhe fizesse falta essa confirmação de que estava numa missão importante.

A reacção seguinte foi semelhante à primeira, mas menos concreta, e não sem o seu quê de humor. Uma janela escancarou-se e uma voz enfurecida gritou: “Você está doido varrido, homem!” Só então me dei conta de que o homem na rua era de facto perigoso, que despertava instintos latentes em alguns dos seus semelhantes, e então pensei: Não haverá aqui nenhuma pessoa sensata com um par de pernas saudáveis que possa descer e pôr um fim a tudo isto? Pouco a pouco umas quantas cabeças foram espreitando para fora das janelas ao longo da rua, mas lá em baixo aquele louco continuava a dominar a situação.

Sentia-me fascinado, tenho de admitir, mas com o passar do tempo talvez mais por todo o espectáculo na rua do que pelo protagonista. As pessoas haviam começado a manifestar-se, riam e gritavam umas para as outras por cima da cabeça do pobre coitado, eu nunca tinha visto nada assim, tanto contacto social instantâneo, houve até um homem no prédio ao lado que me gritou algo. Só entendi a última palavra, “blasfémia”, e obviamente não respondi. Se ao menos tivesse dito algo sensato, como por exemplo, “urgências”, então talvez, quem sabe, fosse possível estabelecer qualquer espécie de contacto de cortesia de janela a janela. Mas não tinha a mínima vontade de ter uma relação de cortesia com um homem adulto – ele tinha idade suficiente para ser filho da minha mulher há muito falecida – a quem não ocorre nada mais sensato para dizer que “blasfémia”, ainda não me sinto assim tão só.

Mas basta deste assunto. Eu estava, como disse, fascinado pelo bulício da vida nas janelas, recordava-me a minha infância, suponho que era melhor ser velho nesse tempo, menos solitário, penso eu, e, sobretudo, morria-se mais ou menos na idade adequada. Eis senão quando um homem aparece disparado de uma porta. Saiu cheio de pressa e direito ao louco. Agarrou-o por trás, deu-lhe a volta e bateu-lhe com tanta força no rosto que fez com que cambaleasse e caísse. Por um instante a rua ficou em completo silêncio, como se ninguém de atrevesse a respirar. Mas logo voltou o pandemónio e agora não restavam dúvidas de que o desagrado se dirigia ao agressor. As pessoas não tardaram a sair para a rua, e enquanto o causador imediato de todo o tumulto estava sentado, calado e aparentemente desconcertado, a alguns metros de distância, deu-se início a uma acalorada discussão da qual era impossível captar todos os detalhes, mas era evidente que o agressor também tinha os seus apoiantes, pois de repente dois jovens lançaram-se à garganta um do outro. Oh, que dia tão negro para a sensatez!        

Entretanto, o louco havia-se levantado, e enquanto os jovens lutavam – muito provavelmente por causa dele, mas possivelmente por motivos bastante diferentes – e algumas das outras pessoas tentavam separá-los, ele retrocedia, distanciando-se cada vez mais, até que chegou à esquina mais próxima, deu a volta e pôs-se a correr. Foi um alívio, e há que dizer que ele sabia correr!

Quando a multidão na rua se deu conta de que o homem tinha desaparecido, a calma foi lentamente regressando e as janelas foram-se fechando umas atrás das outras. Fechei também a minha, não era um dia de calor. O mundo está repleto de insensatez e confusão, a falta de liberdade tem raízes profundas, a esperança pela igualdade vai diminuindo, as forças superiores são demasiado grandes, ao que parece. Temos de nos dar por satisfeitos por vivermos tão bem, dizem as pessoas, a maioria das pessoas vive pior. E depois tomam um comprido para as insónias. Ou para a depressão. Ou para a vida. Quando chegará uma nova geração que entenda o significado da palavra igualdade, uma geração de jardineiros e engenheiros florestais que derrube as grandes árvores que dão sombra a todas as pequenas, e que arranque os rebentos idiotas da árvore do conhecimento?

Kjell Askildsen, conto incluído na colectânea Um Repentino Pensamento Libertador

 

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A Sr.ª M. (6)

O corrimão

Há alguns meses recebi a visita do meu senhorio. Tocou três vezes à porta antes que me desse tempo de abrir, isto apesar de ter ido o mais depressa que pude. Não podia saber que era ele. É raro alguém vir aqui, e quase todos são representantes de seitas religiosas a perguntar se estou em paz com Deus. Dá-me um certo prazer, mas nunca os deixo passar da porta, pois as pessoas que acreditam na vida eterna não são racionais, nunca se sabe o que podem acabar por fazer. Mas desta vez era, como já disse, o senhorio. Havia-lhe escrito há quase um ano para lhe dar conta de que o corrimão das escadas estava partido, e pensei que vinha por esse motivo, por isso deixei-o entrar. Olhou à sua volta. “O senhor vive bem aqui”, disse ele, e a afirmação foi tão tendenciosa que me fez logo ver que deveria ter cautela. “O corrimão das escadas está partido”, disse eu. “Sim, já vi, foi o senhor que o partiu?” “Não, porque haveria de ter sido eu?” “Suponho que é o único que o usa, porque, tirando o senhor, só vive gente nova neste prédio e não me parece que o corrimão se parta sozinho, não acha?” Era obviamente uma pessoa intratável e não quis entrar em nenhuma discussão com ele sobre como e porquê se partem as coisas, de modo que disse laconicamente: “Como quiser, mas preciso desse corrimão e tenho o direito de tê-lo.” Não respondeu e, em vez disso, disse apenas que a renda iria subir vinte por cento a partir do mês seguinte. “Outra vez?” disse, “e logo vinte por cento”. “Deveria ser mais”, respondeu, “este prédio só dá prejuízo, estou a perder dinheiro com ele.” Há muito tempo que deixei de discutir economia com pessoas que dizem perder dinheiro com algo de que se poderiam ter visto livres há trinta anos, de modo que não disse nada. Mas não precisou de uma resposta para continuar com o tema, ele era daquele tipo de pessoas que continuam sozinhas. Pôs-se a dissertar sobre todos os outros prédios que também davam prejuízo, era penoso ouvi-lo, devia ser um capitalista miserável. Mas eu não disse nada, e por fim cessaram as lamentações, já ia sendo tempo. Em vez disso perguntou-me, sem nenhuma razão aparente, se acreditava em Deus. Estive a ponto de perguntar a que deus se referia, mas limitei-me a negá-lo com a cabeça. “Mas tem de acreditar”, disse ele, afinal de contas sempre havia deixado entrar um deles em casa. Para dizer a verdade não me surpreendeu muito, uma vez que é bastante comum que as pessoas com muitas propriedades acreditem em Deus. Não quis, porém, dar azo a que passasse a outro tema, pois havia decidido uma vez por todas não deixar passar da porta nenhum evangelista, de modo que não o deixei continuar. “Então a renda vai subir vinte por cento”, disse-lhe, “suponho que seja esse o motivo da sua visita”. A minha resistência pareceu apanhá-lo de surpresa, pois abriu e fechou a boca um par de vezes sem que dela saísse qualquer som, algo que, presumo, deve ser pouco típico nele. “E espero que trate de mandar reparar o corrimão”, continuei. A sua cara pôs-se vermelha. “O corrimão, o corrimão” disse ele impacientemente, “não pára de fazer barulho acerca do corrimão”. Pareceu-me uma coisa inconveniente de ser dita e irritei-me um pouco. “Mas não entende”, disse eu “que de certa forma esse corrimão é tudo o que tenho para me agarrar à vida”. Arrependi-me assim que o disse, pois formulações precisas devem reservar-se a pessoas que se dispõem a pensar, de outro modo dá confusão. E confusão foi o que deu. Não tenho forças para repetir o que me disse, mas tratava-se em larga medida do que vem depois da morte. No final disse qualquer coisa sobre estar com os pés para a cova, referindo-se a mim, claro, e então zanguei-me. “Deixe de me aborrecer com as suas finanças”, disse-lhe, porque na verdade era do que se tratava, e como não se dispunha a sair logo, permiti-me dar uma pancada com a bengala no chão. Então saiu. Foi um alívio, senti-me contente e livre durante vários minutos, e recordo-me de ter dito a mim mesmo, para os meus botões, claro: “Não desistas, Thomas, não desistas.”        

Kjell Askildsen, conto incluído na colectânea Um Repentino Pensamento Libertador

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Maria (5)

A Sr.ª M.

Uma das poucas pessoas que sabe que ainda existo é a Sr.ª M. da loja da esquina. Duas vezes por semana traz-me aquilo de que preciso para viver, mão não é que seja um grande fardo para ela. Vejo-a muito raramente porque tem uma chave do apartamento e deixa as compras à porta, é a melhor forma, assim protegemo-nos mutuamente e mantemos uma relação pacífica, quase diria amigável. Mas um dia em que a ouvi levar a chave à porta para entrar, vi-me obrigado a chamá-la. Tinha caído e batido com o joelho, e não era capaz de chegar ao sofá. Por sorte, era um dos dias em que calhava vir com as compras, pelo que não tive de esperar mais do que quatro horas. Então chamei-a. Quis logo mandar vir um médico, mas as suas intenções eram boas, só a família mais chegada chama o médico por má-fé, sempre que querem livrar-se dos velhos. Expliquei-lhe tudo o que era preciso saber sobre hospitais e lares de idosos sem bilhete de retorno e, amável como era, pôs-me uma compressa. Depois preparou três sanduíches que me deixou numa mesa junto à cama, para além de uma garrafa de água. Por fim trouxe uma leiteira antiga que tinha encontrado na cozinha. “Para o caso de precisar”, disse ela.

E então saiu. À noite comi uma das sanduíches, e enquanto estava a comer ela apareceu para saber de mim. Foi tão inesperado que tenho de admitir que me deixei levar pelos sentimentos, e disse: “Que boa pessoa que a senhora é!” “Então, então”, respondeu laconicamente, começando a mudar-me a compressa no joelho. “Isto vai ficar bom”, disse ela, e continuou: “Então não quer saber dos lares de idosos. Mas sabe que agora já não lhe chamam lares de idosos, mas lares de terceira idade.” Fartámo-nos de rir os dois acerca disso, o ambiente ficou quase alegre. É um prazer enorme conhecer pessoas com sentido de humor.

A perna doeu-me durante quase uma semana e todos os dias vinha ver-me. No último dia disse-lhe: “Agora estou bem outra vez, graças a si.” “Nada de cerimónias”, interrompeu ela, “correu tudo lindamente”. Nisso tive de lhe dar razão, mas insisti que, sem ela, a minha vida podia ter tomado um rumo infeliz. “Oh, teria dado a volta de uma maneira ou de outra”, respondeu, “o senhor é muito obstinado. Tinha um pai que se parecia com o senhor, por isso sei muito bem do que estou a falar.” Senti que estava a tirar conclusões com base em factos pouco sólidos, afinal de contas não me conhecia, mas não quis que parecesse uma reprimenda, de modo que me limitei a dizer: “Receio que me tenha numa conta demasiado alta.” “Oh, não”, respondeu, “devia tê-lo conhecido, era um homem extremamente teimoso e difícil”. Disse-o com toda a seriedade, admito que me impressionou, fiquei com vontade de rir de alegria, mas mantive uma cara séria e disse: “Estou a ver. E o seu pai também viveu até ficar muito velho?” “Oh, sim, muito velho. Falava sempre com desdoiro da vida, mas nunca conheci ninguém que se esforçasse tanto por não a perder.” A isto podia sorrir sem problemas; era libertador, até me ri um pouco, e ela também. “Suponho que o senhor também seja assim”, disse ela, e impulsivamente perguntou-me se lhe deixava ler a mão. Estendi-lhe uma, não me recordo qual, mas era a outra que queria. Observou-a por alguns instantes e então sorriu e disse: “Tal como eu pensava, o senhor já devia ter morrido há muito tempo.”

Kjell Askildsen, conto incluído na colectânea Um Repentino Pensamento Libertador

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As pessoas do café (4)

Maria

Uma vez no Outono encontrei-me inesperadamente com a minha filha Maria no passeio em frente da relojoaria. Estava mais magra, mas não tive problemas em reconhecê-la. Não me lembro já o que estava a fazer na rua, mas tinha de tratar-se de algo importante, porque foi depois do corrimão da escada se ter partido, de maneira que na verdade eu já tinha deixado de sair à rua. Seja como for, encontrei-a, e pensei por um instante: Que estranha coincidência ter saído hoje. Pareceu ficar contente por me ver, porque disse “pai” e deu-me a mão. De todos os meus filhos ela era a minha preferida, e quando era pequena dizia muitas vezes que eu era o melhor pai do mundo. E então costumava cantar para mim, um pouco desafinada, é certo, mas não por culpa própria, pois herdara isso da mãe. “Maria”, disse eu, “és realmente tu, estás com óptimo aspecto”. “Sim, bebo urina e sou vegetariana”, respondeu ela. Não pude conter o meu riso, há muito tempo que não me ria, imaginem só, tinha uma filha com sentido de humor, inclusive com um humor um pouco atrevido, quem haveria de dizer, foi um lindo momento. Mas equivoquei-me, nunca somos suficientemente velhos para deixarmos para trás as nossas ilusões. A minha filha olhou-me com uma expressão de espanto e foi como se o seu olhar se desvanecesse. “Estás a fazer pouco de mim”, disse ela, “não sabes do que se trata”. “Pareceu-me ter-te ouvido dizer urina”, respondi eu, dizendo a verdade. “Urina, sim, tornei-me outra pessoa.” Disso não tive a mínima dúvida, era lógico, deve ser impossível continuar a ser a mesma antes e depois de começar a beber urina. “Está bem, está bem”, disse eu num tom ameno e querendo falar de outra coisa, talvez de algo agradável, nunca se sabe. Então reparei que ela trazia uma aliança e disse: “E casaste, estou a ver.” Ela olhou para o anel. “Ah, isto”, disse ela, “uso-o apenas para manter os chatos à distância”. Isto, sim, teria de ser uma brincadeira, fazendo um cálculo rápido concluí que ela teria pelo menos uns cinquenta e cinco anos, e nem sequer era tão bonita quanto isso. Então voltei a rir-me pela segunda vez em tanto tempo, e tudo no meio do passeio. “De que te ris?”, perguntou ela. “Creio que começo a ficar velho”, respondi eu, quando percebi que me havia equivocado uma vez mais. “Então é assim que se faz hoje em dia?” Ela não respondeu, por isso fiquei sem saber, mas suponho e espero que a minha filha não seja particularmente representativa dos novos tempos. Mas que fiz eu para ter estes filhos?

Ficámos um instante calados, e pensei que era altura de dizer adeus, um encontro inesperado não deve durar demasiado, mas nesse exacto momento ela perguntou-me se eu me encontrava bem. Não sei onde ela queria chegar, mas disse a verdade, que a única coisa que me importunava eram as minhas pernas. “Já não querem o que eu quero, os meus passos são cada vez mais curtos, daqui a pouco não vou conseguir mexer-me.” Não sei por que motivo lhe falei tanto sobre as minhas pernas, e tornou-se óbvio que não o deveria ter feito. “Deve ser da idade”, disse ela. “Claro que é da idade”, disse eu, “o que mais poderia ser?” “Mas suponho que já não precisas de lhes dar tanto uso, não é?” “Se tu o dizes”. Ao menos captou a ironia, direi isso em seu favor, e irritou-se, mas não consigo mesma, porque disse: “Tudo o que digo está mal.” Não soube o que responder, o que poderia ter dito? Então limitei-me a sacudir a cabeça de forma conscientemente evasiva, já há demasiadas palavras em circulação no mundo e quem fala muito não tem mão no que diz.

“Bom, é melhor ir andando”, disse a minha filha após uma breve pausa, mas suficientemente longa, “tenho de ir ao ervanário antes que feche. Até à próxima.” E deu-me a mão. “Adeus, Maria”, disse eu. E segui o meu caminho. Esta era a minha filha. Sei que tudo tem a sua lógica inerente, mas nem sempre é fácil descobri-la.      

Kjell Askildsen, conto incluído na colectânea Um Repentino Pensamento Libertador

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Valha-me Deus! (3)

As pessoas no café

Uma das últimas vezes em que estive num café foi num domingo de Verão, recordo-me bem, porque quase toda a gente estava sem casaco e gravata, e pensei: Será que afinal não é domingo?, e o facto de ter pensado exactamente isso faz com que me recorde. Sentei-me numa mesa no meio da sala, rodeado de muitas pessoas a comer bolos e sanduíches, mas quase todas as mesas estavam ocupadas por uma só pessoa. Dava uma grande impressão de solidão, e como há muito tempo não falava com ninguém, não me teria importado de trocar umas palavras com quem quer que fosse. Meditei durante algum tempo como poderia fazê-lo, mas quanto mais estudava as caras em meu redor, mais difícil me parecia, com todos aqueles olhos que pareciam não ver; o mundo tornara-se, de facto, realmente deprimente. Mas a ideia de que seria agradável que alguém me dirigisse umas quantas palavras já tinha ficado na minha cabeça, de modo que continuei a pensar, pois é a única coisa que ajuda. Ao cabo de algum tempo soube o que iria fazer. Deixei cair a minha carteira fingindo que havia sido por acidente. Ficou estendida ao lado da minha cadeira, completamente visível para todos aqueles que estavam sentados à minha volta, e vi que muitos olhavam de soslaio. Pensei que talvez uma ou duas pessoas se levantariam para apanhá-la e devolver-ma, pois afinal sou velho, ou ao menos que me chamariam a atenção, por exemplo: “Deixou cair a sua carteira.” Quantas desilusões pouparíamos a nós próprios se deixássemos de ter esperança. Por fim, depois de vários minutos a olhar de soslaio e a esperar, fiz como se de repente me tivesse dado conta de que a havia perdido. Não me atrevi a esperar mais, pois comecei a recear que um desses mirones se atirasse repentinamente à carteira e desaparecesse porta fora com ela. Ninguém podia estar absolutamente seguro de que não continha uma boa quantia de dinheiro, pois acontece às vezes os velhos não serem pobres, alguns são até mesmo ricos, assim é o mundo, aqueles que agarram o que podem na juventude ou durante os seus melhores anos recebem a sua recompensa na velhice.

Assim são as pessoas no café nos dias que correm, isso ao menos aprendi. Enquanto se vive nunca se deixa de aprender, embora não saiba para que serve isso agora, pouco antes de morrer.

Kjell Askildsen, conto incluído na colectâneaUm Repentino Pensamento Libertador

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Carl (2)

Valha-me Deus!

Um dia de Verão em que não choveu senti vontade de fazer exercício ou, ao menos, dar uma volta pelo quarteirão. A ideia animou-me, de repente dei-me conta de que há muito tempo que não me sentia de tão bom humor. Estava tanto calor que pensei que podia pôr cuecas curtas, mas ao procurá-las lembrei-me de que as tinha deitado fora no ano anterior, num ataque de melancolia. Não obstante, a ideia das cuecas curtas tornou-se tão imperiosa que cortei as pernas das ceroulas que tinha vestidas. Nunca somos demasiado velhos para deixar de ter esperança.

Era estranho sair depois de tanto tempo, apesar de tudo ainda me ser familiar, como é obvio. Irei escrever sobre isto, pensei, e de repente senti uma erecção, mesmo no meio do passeio, mas não importava, porque os bolsos das minhas calças eram largos e fundos.

Ao chegar à primeira esquina – demorou algum tempo, o espírito estava determinado, mas as pernas eram fracas – percebi que afinal não me apetecia dar uma volta pelo quarteirão. Seja como for, uma vez que era Verão queria ver algo verde, nem que fosse apenas uma árvore, por isso continuei em frente. Estava calor, tanto calor como quando era pequeno, pelo que me alegrei por levar as cuecas curtas. E com a erecção sob um hábil controlo, sentia-me bem. Pode soar exagerado, mas assim era.

Quando já quase havia deixado para trás três casas, ouvi alguém gritar pelo meu nome. Embora soasse a voz de velho não me virei, pois há muita gente que se chama Thomas. Mas à terceira vez, olhei na direcção de onde partia a voz, era um dia tão fora do comum, tudo podia acontecer. E quem ali estava, no passeio do outro lado da rua, senão o velho professor Storm. “Félix”, gritei, mas estava tão pouco acostumado a usar a voz que o grito não saiu grande coisa. Separava-nos um denso trânsito, e nem ele nem eu nos atrevíamos a atravessar a rua, teria sido um disparate perder a vida de pura alegria depois de me ter aguentado sem ela durante tanto tempo. De modo que a única coisa que pude fazer foi gritar pelo nome dele uma vez mais e acenar-lhe com a minha bengala. Foi uma grande desilusão, mas ao menos era um consolo saber que ele me tinha visto e chamado pelo meu nome. “Adeus, Félix”, gritei, e dispus-me a seguir o meu caminho.

Mas quando cheguei ao cruzamento seguinte lá estava ele, mesmo à minha frente, pelo que tinha ficado triste sem motivo algum. “Thomas, meu velho amigo”, disse ele, “por onde tens andado?” Não lhe queria dizer, por isso não lhe respondi, mas disse: “o mundo é grande, Félix.” “E todos estão mortos ou quase mortos.” “Sim, a vida com a vida se há-de pagar.” “Bem dito, Thomas, bem dito.” A mim não me pareceu nada bem dito, e quase para me tornar merecedor dos seus elogios, disse: “Enquanto tivermos sombra, há vida.” “Oh, nem mais, a maldade não tem fim.” Foi nesse momento que comecei a perguntar-me se ele não estaria senil, e decidi pô-lo à prova: “O problema não é a maldade”, disse eu, “mas a insensatez, como por exemplo a dos jovens montados nessas motos enormes.” Olhou-me por algum tempo e então disse: “Creio que agora não entendo muito bem onde estás a querer chegar.” Como não tinha a mínima pretensão de me vangloriar à sua custa, limitei-me a dizer, como que por casualidade: “Bem, e o que é a maldade afinal?” Naturalmente ele não sabia o que responder, não era teólogo, de maneira que me apressei a acrescentar: “Mas não falemos disso agora – como tens passado?” Era evidente que o havia posto de mau humor, porque olhou para o relógio atentamente e depois disse: “Sempre que me encontro com alguém, sinto-me cada vez mais só.” Não era uma frase particularmente agradável, mas continuei como se nada fosse: “Pois”, disse eu, “assim são as coisas”. Dei-me conta de que se não me apressasse a dizer adeus, ele acabaria por fazê-lo primeiro, mas não fui suficientemente rápido, de modo que se me adiantou: “Mas agora tenho de ir, Thomas, deixei as batatas ao lume.” “Ah, claro, as batatas”, respondi. Estendi-lhe a mão e disse: “Bem, para o caso de não nos voltarmos a ver…” Deixei as palavras suspensas no ar, porque era uma dessas frases que soam melhor inacabadas. “Sim”, disse, apertando-me a mão. “Adeus, Félix.” “Adeus, Thomas.”

Dei meia volta e regressei a casa. Não tinha visto nada verde, mas, valha-me Deus, tantos acontecimentos num só dia!       

Kjell Askildsen, conto incluído na colectânea Um Repentino Pensamento Libertador

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Xadrez (1)

Carl

Quando a minha mulher era viva, eu costumava pensar que quando ela morresse teria mais espaço para mim. Imagine-se só toda a sua roupa interior, pensava eu, que enche três gavetas inteiras da cómoda. Vai haver espaço para as minhas moedas de cobre numa das gavetas, para as minhas caixas de fósforos na outra gaveta e para as minhas rolhas na terceira. Isto agora está um caos, pensava eu.

E então ela morreu, já faz muito tempo. Era uma pessoa exigente, mas que descanse em paz, uma vez que me deixou em paz finalmente. Esvaziei gavetas e prateleiras e armários de tudo quanto ela deixara, e fiquei com imenso espaço vazio, mais do que seria capaz de usar. E o que está vazio, vazio está. Por isso, desfiz-me de um par de armários. Mas o resultado é que em vez de dois armários vazios fiquei com o quarto inteiro mais vazio. Foi uma imprudência da minha parte, mas ocorreu, como disse, há muito tempo, e nessa altura eu era bastante mais novo.

Bem, algumas semanas ou talvez meses depois de ter levado a cabo esta imprudente ampliação do vazio do quarto, recebi a inesperada visita do meu segundo filho, Carl. Vinha por causa de um xaile deixado pela mãe, queria dá-lo à sua mulher como recordação de infância. Quando se apercebeu de que me havia desfeito dele, tornou-se impertinente. “Nada é sagrado para ti?” gritou. E isto dito por ele, um homem de negócios que ganha a vida a comprar e a vender. Senti uma enorme vontade de o interromper logo ali, mas pensei duas vezes, ao fim e ao cabo sou cúmplice da sua existência. Por isso perguntei-lhe, num tom reconciliatório: “Que tinha esse xaile de tão especial?” “A mãe fez esse xaile quando estava grávida de mim. Ela tinha uma adoração especial por ele.” “Ah, estou a ver. Foi criado ao mesmo tempo que tu. E tu foste provavelmente o seu filho predilecto?” “Por acaso, até fui.” “Ah, não foi por acaso”, respondi, começando a perder a paciência. Ele era a cara chapada da mãe, e, tal como ela, incapaz de decifrar a ordem natural das coisas. “Bom, o xaile foi-se mesmo”, disse eu, “mas se isto te serve de consolo, só o que foi perdido pode ser possuído para sempre”. Foi obviamente uma afirmação disparatada, mas pensei que iria gostar. Equivoquei-me, tinha-me esquecido por um instante de que ele era um homem de negócios. Deu um passo ameaçador na direccção onde eu estava sentado e então desbobinou um furioso mas entediante discurso acerca da minha insensibilidade. Concluiu dizendo que por vezes não entendia como podia eu ser seu pai. “A tua mãe era uma mulher honrada”, respondi, mas ele não captou o sentido das minhas palavras. Que fiz eu para ter filhos de compreensão tão lenta? “Não precisas de mo dizer”, disse ele. O rosto estava a ficar cada vez mais vermelho e de repente ocorreu-me que talvez pudesse sofrer do coração: afinal de contas, já tinha sessenta anos, e, para evitar uma eventual desgraça, pedi-lhe desculpa pelo xaile e disse-lhe que se tivesse vindo antes teria podido ficar com tudo o que a mãe tinha deixado. Continuo a pensar que estas foram palavras bastante reconciliatórias, mas o seu rosto pôs-se ainda mais vermelho. “Quer dizer que deitaste tudo fora?” gritou. “Tudo”, respondi, “mas porquê?” Não queria contar-lhe, de modo que disse: “Nunca irias entender.” “Mas que coisa tão desumana.” “Pelo contrário. Foi fruto de uma decisão bem pensada e essa maneira de agir, por assim dizer, é praticamente a única coisa que nos distingue como seres humanos.” Foi um puro sofisma da minha parte, é claro, mas ele nem parecia estar a ouvir as minhas palavras. “Então não tenho mais nada a fazer nesta casa”, gritou. Tinha apanhado o hábito de gritar, o que talvez fosse sinal de que a sua mulher estaria a ficar surda. Eu, pelo contrário, ouço muito bem, e por vezes isso é bastante penoso. Certos sons são muito mais fortes do que eram; além disso, apareceram outros novos, como o do martelo pneumático e coisas desse tipo. De maneira que não me importaria nada de estar um pouco surdo. “Estou a ouvir-te”, disse-lhe, “mas não vejo como é que isso resolve seja o que for”. Então por fim saiu, já estava mais do que na hora, porque senão eu poderia ter perdido a paciência. Embora, verdade seja dita, eu tenha mais paciência do que costumava ter, suponho que se deva à idade, nós os velhos temos de aguentar muita coisa.

Kjell Askildsen, conto incluído na colectânea Um Repentino Pensamento Libertador

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Xadrez

O mundo já não é o que era. Por exemplo, agora vive-se mais tempo. Eu tenho uns bons oitenta e muitos anos e ainda não basta. Estou demasiado saudável, embora não tenha grandes razões para estar saudável. Mas a vida não me larga. Aquele que não tem nada por que viver, nada tem por que morrer. Talvez seja por isso.

Um dia, há muito tempo, antes de as minhas pernas se terem tornado demasiado fracas, fui a casa do meu irmão. Não o via há mais de três anos, mas ele continuava a viver no mesmo sítio onde nos encontrámos da última vez. “Estás vivo”, disse ele, embora fosse mais velho do que eu. Eu tinha levado um farnel, e ele deu-me um copo de água. “A vida é dura”, disse ele, ´”é insustentável”. Continuei a comer sem responder. Não tinha ido lá para discutir. Por isso, acabei de comer e bebi a água. Ele sentou-se e fixou o olhar num ponto acima da minha cabeça. Se me tivesse levantado e ele não desviasse o olhar, teria olhado directamente para mim. Mas provavelmente teria desviado os olhos. Ele não gostava da minha companhia. Ou para ser mais preciso, não gostava de se ver a si mesmo na minha companhia. Creio que tinha má consciência, pelo menos boa não era. Ele escreveu uma vintena de romances volumosos, e eu apenas uns quantos e pequenos. Ele é considerado um bom escritor, ainda que um pouco obsceno. Escreve imenso sobre o amor, sobretudo o amor físico, seja lá onde for que aprendeu sobre o assunto.

Continuou a olhar fixamente para o tal ponto sobre a minha cabeça, pensando talvez que tinha toda a liberdade para o fazer, refastelado de rabo inchado com os seus vinte romances, e quase senti vontade de me ir embora sem cumprir o propósito da minha visita, mas, depois de uma viagem tão longa, pareceria algo absurdo e, por isso, sugeri que jogássemos uma partida de xadrez. “Isso demora tanto tempo”, disse-me, “e já não tenho assim tanto tempo a perder. Podias ter vindo antes”. Era aí que devia ter-me levantado e saído, era o que ele merecia, mas sou demasiado cortês e civilizado, é a minha grande fraqueza, ou uma delas. “Não demora mais do que uma hora”, disse-lhe. “O jogo, sim”, respondeu, “mas não a excitação que se segue, ou a vergonha, no caso de eu perder. Como deves imaginar, o meu coração já não é o que era. Suponho que o teu também não.” Não lhe respondi, tinha muito pouca vontade de discutir com ele o meu coração. Por isso, fugi ao assunto: “Com que então, tens medo de morrer, é isso?” “Que disparate. Simplesmente ainda não acabei a minha obra.” Era desta forma pomposa que se expressava, dava vontade de vomitar. Eu tinha poisado a minha bengala no chão e dobrava-me para a apanhar, querendo pôr fim às suas bazófias. “Quando morrermos, pelo menos deixamos de nos contradizer”, disse eu, mas talvez fosse esperar de mais que ele entendesse o sentido das minhas palavras. E ele era demasiado orgulhoso para perguntar o que é que eu queria dizer. “Não tive intenção de te ofender”, disse-me. “De me ofenderes”, respondi em voz alta, pois naturalmente tinha ficado um pouco exaltado, “estou-me nas tintas para o pouco que escrevi e para o pouco que não escrevi”. Levantei-me e fiz-lhe um pequeno discurso: “A cada hora que passa o mundo vê-se livre de milhares de idiotas. Pensa bem, alguma vez pensaste quanta estupidez acumulada desaparece no decurso de um dia? Todos aqueles cérebros que deixam de funcionar, porque é precisamente aí que a estupidez se esconde. Mas, mesmo assim, ainda resta demasiada estupidez, porque alguém a resolveu perpetuar em livros, e, com isso, manteve-a viva; enquanto as pessoas lerem romances, certos romances dos que mais há por aí, haverá estupidez de sobra.” E depois acrescentei, talvez de uma forma um pouco vaga, tenho de admitir: “Foi por isso que vim cá jogar uma partida de xadrez.” Ele continuou ali sentado e mudo durante um bom bocado, enquanto eu me preparava para sair, e por fim disse: “Foram muitas palavras para pouco efeito. Mas verei o que posso fazer com elas - e irei pô-las na boca de um ignorante.”

Era assim o meu irmão. A propósito, ele morreu nesse mesmo dia; é mais do que provável que tenham sido essas as suas últimas palavras, pois saí sem lhe dar resposta, o que decerto não terá sido do seu agrado. Obviamente queria ter a última palavra, como acabou por ter, claro, mas provavelmente teria gostado de não ficar por ali. Quando relembro quão excitado ele estava, não consigo deixar de pensar que os chineses têm um ideograma especial para a morte por exaustão durante o acto sexual.

Apesar de tudo, éramos irmãos.

Kjell Askildsen, conto incluído na colectânea Um Repentino Pensamento Libertador

 

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