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Durante a minha primeira juventude, era um sonhador; gostava de acariciar, alternadamente, as ideias sombrias ou irisadas, que desenhava para mim uma imaginação inquieta e cheia de ambições. Que me ficou, porém, disso? Uma fadiga como após um combate nocturno com um fantasma e uma recordação desagradável cheia de remorsos. Nessa luta inútil, esgotei o ardor da minha alma e a firmeza do meu querer, indispensáveis para uma vida activa. Entrei nesta vida depois de a ter vivido em pensamento e fiquei farto e desgostoso dela, tal como um homem que lê a má imitação dum livro que conhece há muito tempo.
Mikail Lermontov, Um Herói do Nosso Tempo
Sou como o marujo que nasceu e cresceu na coberta dum brigue corsário: a sua alma está acostumada às tempestades e aos combates. Atirado para a costa, aborrece-se e cai na tristeza. O bosque umbroso pode chamá-lo, o Sol tranquilo pode brilhar para ele, vai e vem todo o dia ao longo do areal, só presta atenção ao murmúrio monótono das vagas que rolam e perscruta com o olhar as brumas longínquas. Não aparece, lá longe, na linha pálida que separa o pélago azul-escuro das nuvenzinhas cinzentas, a vela desejada, a princípio semelhante à asa duma gaivota, mas que, aos poucos, se distingue da espuma das vagas e caminha com regular velocidade para um porto solitário?...
Mikail Lermontov, Um Herói do Nosso Tempo
Bem vê, já passei a idade em que se morre a pronunciar o nome da bem-amada e se lega aos amigos uma mecha de cabelo, com brilhantina ou sem brilhantina. Ao pensar na morte próxima e possível, só penso em mim próprio: há pessoas que nem sequer fazem isso! Quanto aos amigos que, amanhã, me esquecerão ou, o que é pior, dirão a meu respeito sabe Deus que tolices; quanto às mulheres que, ao beijarem outro homem, troçaram de mim, a fim de não despertar o seu ciúme por um morto, pouco me importo com eles.
Das tempestades da vida, só extraí algumas ideias, mas nenhum sentimento. Há muito tempo que não vivo pelo coração, mas pela cabeça. Penso e analiso as minhas próprias paixões e os meus actos com severa curiosidade, mas sem nenhum interesse. Há em mim dois homens: um vive no pleno sentido do termo; o outro pensa e julga o primeiro (...)
Mikail Lermontov, Um Herói do Nosso Tempo
Evoquei na memória todo o meu passado e, sem querer, pus-me a fazer interrogações: Porque vivi? Nasci para atingir algum fim?... Esse fim existia, certamente, e, com certeza, o meu destino no mundo era grande pois sinto na minha alma forças imensas... Não adivinhei, contudo, esse destino e deixei-me arrastar pelos apelos sedutores das paixões vãs e ingratas. Do seu cadinho, saí duro e frio como o ferro, mas perdi para sempre a chama dos nobres impulsos, a melhor flor da minha vida.
Desde então, quantas vezes tenho desempenhado o papel do cutelo nas mãos do destino! Como instrumento de suplício, caí, em geral, sem maldade, sempre sem remorsos, no pescoço das vítimas condenadas... O meu amor não deu a felicidade a ninguém, por nunca ter sacrificado nada por aquelas a quem amei. Amei-as por mim, pelo meu próprio prazer. Satisfazia, simplesmente, a estranha necessidade do meu coração, absorvendo com avidez os seus sentimentos, a sua ternura, as suas alegrias e as suas dores, e nunca podia saciar-me. Assim, um homem que morre de fome adormece esgotado e vê diante de si manjares apetitosos e vinho espumante; devora em êxtase as prendas fantásticas da sua imaginação e sente-se satisfeito; mas, mal desperta, o sonho desfaz-se... e redobram a fome e o desespero.
Morrerei, talvez, amanhã?... Não ficará na terra nenhum ser que me tivesse compreendido perfeitamente. Uns consideram-me pior, outros melhor do que sou na realidade... Os últimos dirão: era um excelente rapaz; os primeiros: era um grande patife. Enganam-se, tanto uns como outros. Depois, valerá a pena viver? Vivemos, apesar de tudo, por curiosidade: estamos sempre à espera de qualquer coisa de novo... Como é ridículo e desagradável!
Mikail Lermontov, Um Herói do Nosso Tempo
Sinto-me muito à vontade; gosto dos meus inimigos, embora não seja à maneira cristã. Divertem-me, põe-me o sangue em ebulição. Estar sempre na defensiva, espiar cada volver de olhos, captar o sentido de cada palavra, adivinhar intensões, furtar as voltas dos conspiradores, dar a impressão de se deixar enganar e atirar abaixo com uma só pancada todo o edifício construído penosamente à força de astúcia e de cálculo, eis o que me ensina a viver.
Mikail Lermontov, Um Herói do Nosso Tempo
- Acha que tenho o ar dum assassino?
- É pior do que isso...
Fiquei um momento meditativo e depois disse-lhe com um ar profundamente comovido:
- Sim, tal tem sido o meu destino, desde a infância. Todos liam no meu rosto os sinais de tendências más que não existiam. Supunham-nas, porém, e nasceram. Era modesto e acusaram-me de malicioso: tornei-me astuto. Tinha o profundo sentimento da distinção entre o bem e o mal; mas ninguém me acarinhava e todos me magoavam: tornei-me rancoroso. Era triste; as outras crianças eram alegres e faladoras e sentia-me superior a elas; colocaram-me a baixo de todos: passei a ser invejoso. Estava disposto a amar o universo inteiro, ninguém me quis compreender: aprendi a odiar.
A minha juventude incolor passou-se na luta contra mim próprio e contra os outros; os meus melhores sentimentos, por medo das troças, enterrei-os no fundo do meu coração. Dizia a verdade e não me acreditavam: passei a mentir. Depois de conhecer bem o mundo e as molas da sociedade, tornei-me perito na arte de viver; mas descobri que outros, sem qualquer esforço de habilidade, eram felizes e gozavam, gratuitamente, das vantagens que procurava obter com um zelo infatigável: então no meu coração nasceu o desespero, não o que se pode curar com o cano duma pistola, mas o desespero frio, impotente, que se oculta sob um sorriso amável e despreocupado.
Tornei-me um estropiado moral: uma parte da minha alma já não existia, secara, desfizera-se, estava morta; cortei-a e atirei-a fora. Como a outra metade se agitava e vivia ao serviço de todos, ninguém deu por nada, visto ninguém conhecer a existência da metade perdida. Agora, porém, reanimou em mim a sua recordação e li em si o seu epitáfio. Muita gente, em geral, considera ridículos os epitáfios, mas eu não, sobretudo quando me lembro do que está por baixo deles. Não lhes peço, aliás, que compartilhe da minha opinião: se o que disse lhe pareceu ridículo, pode rir à sua vontade, se quiser: previno-a de que isso não me incomodará absolutamente nada.
Mikail Lermontov, Um Herói do Nosso Tempo
Sinto em mim essa sede insaciável que pretende absorver tudo que encontra no seu caminho. Considero os sofrimentos e alegrias dos outros somente em relação a mim, como um alimento que mantém as forças da minha alma. Não sou capaz de me desorientar sob a influência da paixão. A ambição em mim é esmagada pelas circunstâncias, mas manifesta-se sob um outro aspecto, porque a ambição é somente a sede do poder e o meu primeiro prazer é submeter à minha vontade tudo o que me rodeia; suscitar à volta o sentimento de amor, da devoção e do medo, não será o primeiro indício, e o mais magnífico triunfo, para o domínio?
Ser para alguém causa de dor e d alegria, sem ter nenhum direto positivo a isso, não será o mais agradável alimento do nosso orgulho? Ora, que é a felicidade? O orgulho satisfeito. Se me considero a mim próprio como o melhor dos seres, o mais poderoso do mundo, sentir-me-ei feliz. Se todos pudessem amar-me, encontraria em mim próprio infinitas fontes de amor.
O mal gera o mal; o primeiro sofrimento leva a conceber o prazer de torturar outrem; a ideia do mal não pode entrar na cabeça dum homem sem que tenha vontade de a aplicar à realidade. Já disse alguém que as ideias são seres orgânicos: o seu nascimento dá-lhes já uma forma e essa forma é acção. O homem na cabeça do qual nascem mais ideias actua mais do que os outros. Eis porque um génio pregado a uma secretária de funcionário tem de morrer ou ficar doido; do mesmo modo, um homem de compleição vigorosa, se leva uma vida sedentária e actua moderadamente, morrerá dum ataque de apoplexia.
As paixões não são mais do que ideias no seu primeiro britar. Pertencem por direito próprio à juventude do coração e bem tolo é o que pensa ser movido por elas toda a sua vida: muitos risos serenos começam por cascatas ruidosas, mas nenhum salta ou faz espuma até ao mar. Essa calma, porém, é indício dema força enorme, embora oculta.
A plenitude e profundidade dos sentimentos e das ideias não são consentâneas com transportes excessivos. A alma, ao sofrer e gozar, dá rigorosamente conta de tudo e adquire a convicção de que deve ser assim. Sabe que em tempestades o ardor constante do sol a secaria; penetra-se da sua própria vida, anima-se e castiga-se a si própria como um menino muito querido. É somente quando atinge esse mais alto estado do conhecimento de si que o homem pode apreciar a justiça de Deus.
Mikail Lermontov, Um Herói do Nosso Tempo
Não há nenhum homem no mundo em que o passado exerça uma influência tão grande como em mim. Cada recordação dum desgosto ou duma alegria vibra de maneira doentia na minha alma e atinge sempre as mesmas ressonâncias... Sou assim feito: não esqueço nada, nada!
Mikail Lermontov, Um Herói do Nosso Tempo
Tenho um carácter infeliz. Foi a minha educação que me fez desta maneira, foi Deus que me criou assim? Não sei. Só sei que, se acuso a infelicidade dos outros, não deixo de ser infeliz por isso. Bem entendido, isto é um fraco consolo para os que me rodeiam. Sucede, porém, realmente assim. Desde a minha primeira juventude, a partir do minuto em que deixei de ter a tutela de meus pais, dispus-me a gozar, furiosamente, de todos os prazeres que se podem obter com dinheiro e, como é lógico, esses prazeres só me inspiraram nojo. Em seguida, lancei-me na vida mundana, mas depressa a alta sociedade me fatigou também. Enamorei-me de jovens beldades e fui amado por elas; mas o seu amor só serviu para exasperar a minha imaginação e o meu orgulho. O meu coração continuou vazio. Dispus-me a ler, a aprender. Os estudos aborreceram-me também. Vi que nem a glória nem a felicidade dependiam deles de maneira nenhuma, pois os seres mais felizes são os ignorantes. Quanto à glória, é uma questão de sorte. Para a alcançar, basta ser hábil.
A partir de então, o aborrecimento apoderou-se de mim... Em breve, fui transferido para o Cáucaso. Foi a época mais feliz da minha vida. Esperava que o aborrecimento desaparecesse sob as balas dos tchetchenes, mas foi uma esperança vã! Ao cabo de um mês, estava tão habituado ao seu zumbido e à proximidade da morte, que, na verdade, prestava mais atenção aos mosquitos. Mergulhei num aborrecimento ainda maior do que dantes, pois tinha quase perdida a minha derradeira esperança. (...)
(...) A minha alma foi corrompida pelo mundo, a minha imaginação é inquieta, o meu coração insaciável: dêem-me tudo e ainda é pouco. Habituei-me tanto à tristeza como ao prazer, e a minha existência torna-se de dia para dia mais vazia. Resta-me um único recurso: viajar. (...) Tenho a certeza, pelo menos, de que essa última consolação não se esgotará depressa; conto com as tempestades e os maus caminhos!
Mikail Lermontov, Um Herói do Nosso Tempo
Contra vontade, fiquei impressionado pela aptidão dos russos a adaptarem-se aos costumes dos povos entre os quais têm de viver. Não sei se esta maneira de ser merece censura ou elogio. Prova, simplesmente, uma admirável ductilidade de espírito e a presença dum claro e sólido bom-senso para desculpar o mal em todos em todos os casos em que ele parece necessário ou é impossível abolir.
Mikail Lermontov, Um Herói do Nosso Tempo