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15.11.20

Eu não conheço fisionomia mais difícil de desenhar, porque nunca vi natureza mais complexamente bem dotada. Se fosse possível desdobrar um homem, como quem desdobra os fios de um cabo, Antero de Quental dava alma para uma família inteira. É sabidamente um poeta na mais elevada expressão da palavra; mas ao mesmo tempo é a inteligência mais crítica, o instinto mais prático, a sagacidade mais lúcida, que eu conheço. É um poeta que sente, mas é um raciocínio que pensa. Pensa o que sente; sente o que pensa.

Inventa, e critica. Depois, por um movimento reflexo da inteligência, dá corpo ao que criticou, e raciocina o que imaginou. — O seu temperamento apresenta um contraste correlativo: é meigo como uma criança, sensitivo como uma mulher nervosa, mas intermitentemente é duro e violento.

É fraco, portanto? Não. A vontade, em obediência à qual, e com esforço, se faz colérico, fá-lo também forte — desta força persistente, raciocinada e na aparência plácida, como a superfície do mar em dias de bonança. O Oceano, porém, é interiormente agitado pelo gulf stream quente e invisível: também às vezes a placidez extrema da sua face encobre ondas de aflição que sobem até aos olhos e rebentam em lágrimas ardentes. Sabe chorar, como todo o homem digno da humanidade.

É destas crises que nasceram os seus versos, porque Antero de Quental não faz versos à maneira dos literatos: nascem-lhe, brotam-lhe da alma como soluços e agonias. Mas, apesar disso, é requintado e exigente como um artista: as suas lágrimas hão de ter o contorno de pérolas, os seus gemidos hão de ser musicais. As faculdades artísticas geradoras da estatuaria e da sinfonia são as que vibram na sua alma estética. A noção das formas, das linhas e dos sons, possui-a num grau eminente: não já assim a da cor nem a da composição. Aos quadros chama painéis com desdém, e por isso mesmo tem horror à descrição e ao pitoresco. É artista, no que a arte contém de mais subjetivo. A sua poesia é escultural e hierática, e por isso fantástica. É exclusivamente psicológica e dantesca: não pode pintar, nem descrever: acha isso inferior e quase indigno.

Os seus versos são sentidos, são vividos como nenhuns; mas o sentir e o viver deste homem é de uma natureza especial que tem por fronteiras físicas as paredes do seu crânio, mas que não tem fronteiras no mundo real, porque a sua imaginação paira librada nas asas de uma razão especulativa para a qual não há limites.

O poeta é por isso um místico, e o crítico um filósofo. O misticismo e a metafísica, o sentimento e a razão, a sensibilidade e a vontade, o temperamento e a inteligência, combatem-se, às vezes dilacerando-se. Eis aí a explicação desta poesia que é o retrato vivo do homem. O génio, esse quid divinatório, que não é honra para nenhuma criatura possuir, porque só nos dá merecimento aquilo que ganhámos à força de inteligência e de vontade; o génio, que é uma faculdade tão acidental como a cor dos cabelos, ou o desenho das feições; o génio, que pode andar ligado a uma inteligência medíocre, mas que o não anda no caso de Antero de Quental — é o predicado particular e a chave do enigma deste homem. O génio pressupõe a intuição de uma verdade visceral ou fundamental da natureza. Essa intuição, essa aspiração absorvente, é para o nosso poeta a síntese da verdade racional ou positiva e do sentimento místico: uma poesia que exprima o raciocínio, ou antes uma filosofia onde caibam todas as suas visões. O próprio do génio é querer realizar o irrealizável; é ser quimérico, no sentido crítico da palavra, quando por quimera entendemos uma verdade essencial que não pode todavia reduzir-se a fórmulas compreensíveis, ou uma cousa cuja realidade se sente, sem se poder ver.

Dos aspectos quase inesgotavelmente variáveis desta singular fisionomia de homem, desta mistura excepcional de pensamentos e de temperamentos num mesmo individuo, resulta porém um tipo de sinceridade e de retidão mais singular ainda, porque mais facilmente podia resultar dela um grande cínico. É sobretudo um estoico, sem deixar de ter bastante de cético; é um místico, mas com uma forte dose de ironia e humorismo; e um misantropo, quando não é o homem do trato mais afável, da convivência mais alegre; é um pessimista, que todavia acha em geral tudo ótimo. Intelectualmente é a fisionomia mais dúbia, complexa e contraditória por vezes; moralmente é o carácter mais inteiro e melhor que existe. A sua inteligência encontra-se permanentemente no estado de alguém que, querendo ir para um sitio, resiste por não querer ao mesmo tempo, sem todavia ter razões bastantes para querer nem também para não querer. O núcleo da sua personalidade, se a encaramos pelo lado praticamente humano, está na energia do seu querer moral, e não na lucidez do seu pensamento; embora tenha a pretensão de julgar que a sua vontade obedece sempre à sua razão. É verdade que dentro de si tem permanentemente um espelho facetado que representa e critica as modalidades do seu pensamento; mas, por isso mesmo, vê ou inventa faces de mais às cousas, e também por vezes o cristal embacia. O que nunca esmorece é a bondade luminosa da sua alma. É um homem fundamentalmente bom.

A complexidade do seu espírito dá-lhe uma variedade de aptidões singular. Conversador como poucos, fácil, espontâneo, original e sugestivo, irónico, humorista, espirituoso, descendo até à própria charge, não há ninguém como ele para soltar o carro da sua fantasia critica na ladeira de uma tese, e, explorando-a em todos os sentidos, arquitetar uma teoria. Os seus opúsculos em prosa (da melhor prosa portuguesa deste tempo) têm em geral este carácter. São lógicos, são bem deduzidos — sem serem suficientemente pensados. São frutos da imaginação; são conversas escritas, dessas conversas que durante horas seduzem os que o ouvem — porque é um charmeur.

Ele próprio se embriaga, não com as suas palavras, mas sim com aquela teoria passageira que inventou ad hoc, e, quando alguém lhe objecta um pequeno senão, todavia essencial ao seu edifício lógico, resiste, defende-se, irrita-se às vezes, mas por fim é ele próprio que, com um dito, desfaz toda a construção. Seria um orador, um jornalista de primeira ordem, se não tomasse apenas a sério a sua missão de poeta, ou antes de filósofo. Depois de tudo isto dirão pessoas pouco dadas ao estudo do animal homem que Antero de Quental é um assombro. Longe disso. A sua força é a prodigalidade com que a natureza dotou o seu espírito; mas essa força é uma fraqueza. Tem demasiada imaginação para ver bem; e por outro lado o raciocínio crítico peia-lhe os voos luminosos da fantasia. Vê de mais para poder ser ativo, ou não tem a energia correspondente à sua visão. Se a tivesse, seria verdadeiramente um assombro. A imaginação e a razão, irredutíveis nos cérebros humanos com as circunvoluções limitadas que contêm, são igualmente poderosas no seu cérebro para que qualquer delas domine. Lutam em permanência, procurando entender-se, combinar-se, penetrar-se, e, no desejo quimérico da síntese, desequilibram o homem, atrofiando-lhe a energia ativa. Ainda assim, felizes daqueles cuja inércia desse um livro comparável a este!

Mas é que as suas páginas foram escritas com sangue e lágrimas! E doe ver a vida do mais belo espírito consumir-se em agonias de uma alma em luta comigo mesmo! O comum da gente, ao ler as páginas deste volume, dirá então: Quantas catástrofes, que desgraças, este homem sofreu! que singular hostilidade do mundo para com uma criatura humana! — E todavia o mundo nunca lhe foi propriamente hostil, nenhuma desgraça o acabrunhou; a sua vida tem corrido serena, plácida, e até para o geral da gente em condições de felicidade.

É que o geral da gente não sabe que as tempestades da imaginação são as mais duras de passar! Não há dores tão agudas como as dores imaginárias. Não há problemas mais difíceis do que os problemas do pensamento, nem crises mais dolorosas do que as crises do sentimento. As agonias dilacerantes da morte com as ânsias do estertor, os horrores mais inverosímeis dos crimes monstruosos, as aflições mais pungentes da saudade, as tristezas mais dolorosas da solidão, as lutas do dever com a paixão, os gritos do homem arruinado, os ais da orfandade faminta… tudo, tudo, quanto no mundo pode haver de doloroso, desde a miséria até à prostituição, desde o andrajo até ao veludo arrastado pela imundície, desde o cardo que dilacera os pés até ao punhal que rasga o coração: tudo isso é menos, do que a agonia de um poeta vendo passar diante de si, em turbilhão medonho, as lúgubres misérias do mundo. Todas as aflições têm o seu quê de imaginativas, e por isso há apenas uma espécie de homens que não sentem: são os cínicos, esses que perderam os nervos da moralidade, os anestesiados do sentimento.

Quando se é poeta como Antero de Quental, a imaginação exacerbada vibra como as harpas que os gregos expunham às virações da brisa nos ramos das árvores. Nenhum dedo lhes feria as cordas, e todavia tocavam! Nenhuma dessas desgraças do mundo feriu a harpa da vida do poeta; e todavia essa harpa geme e chora, soluça e grita, porque pelas suas cordas passa o vento agreste das ideias, passa o eco ululante do egoísmo dos homens, aflitivo como os uivos de uma alcateia de lobos famintos.

Excerto do prefácio escrito por Oliveira Martins acerca de Antero de Quental, no livro Os Sonetos Completos de Antero de Quental

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