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(...) exorta Mestre Eckhart, de modo mais radical no sermão sobre a pobreza em espírito, que na sua dimensão interior consiste no despojamento ou liberdade total: nada querer, nada saber, nada ter. No que respeita ao primeiro destes três aspectos de uma mesma liberdade plena, ao libertar-se de toda a “vontade criada” – incluindo a de “realizar a vontade de Deus” –, bem como do “desejo” ou “saudade” (Verlangen) “da eternidade” e “de Deus”, o ser humano devém “como era, quando não era”, quando não tinha “nenhum Deus” e era “causa primeira” de si mesmo, fruindo da “verdade” numa pura coincidência entre ser e querer, “livre de Deus e de todas as coisas”. Foi apenas quando, “por livre determinação da vontade” (aus freiem Willensentschluβ), saiu dessa primordial e pura imanência recebendo o ser criado, que passou a ter “um Deus”, pois antes de haver “criaturas” Deus não era “Deus”, mas apenas “o que (...) era”, sendo somente pela constituição das “criaturas” que isso a que chamam “Deus” deixa de ser em si mesmo para passar a ser nelas e para elas. A determinação de Deus como Deus é assim relativa à determinação das criaturas como criaturas, num mesmo movimento de transformação de uma comum natureza ou fundo primordial, pois “a mais ínfima criatura”, na medida em que é “em Deus”, tem a mesma “categoria de ser” que ele, o que faz com que Deus, enquanto apenas o é para a criatura, não possa ser o seu “fim supremo”. Na verdade, se uma “mosca” possuísse “intelecto” e fosse capaz de “buscar intelectualmente o abismo eterno do ser divino de onde saiu”, o mero “Deus” que o é para a criatura não a poderia satisfazer. É por esse motivo, diz o pregador, que “nós rogamos a Deus ser livres de Deus” (Darum bitten wir Gott, daβ wir Gottes ledig werden), fruindo eternamente a verdade “aí onde os anjos mais elevados, a mosca e a alma são iguais”, essa mesma imanência abissal e primordial onde se residia antes da livre decisão criadora, quando se queria o que se era e se era o que se queria, nada querendo portanto, na original “pobreza” do estado incriado e pré-criatural.
A mesma liberdade radical expressa-se no nada saber, num esvaziamento de todo o conhecimento de modo a que o ser humano não saiba nem sinta que Deus “vive nele”, pois quando ainda residia “no ser eterno de Deus” nada aí vivia senão ele mesmo, livre de toda a alteridade (e da distinção sujeito-objecto inerente a todo o conhecimento). Libertando-se de todo o conhecimento, o ser humano, ou melhor, humanado, recupera o estado primordial, anterior a ser algo ou alguém, anterior à determinação da existência e da criatura, o que o pregador vê como um deixar Deus operar o que quiser e permanecer livre de saber algo acerca disso. Na verdade, na nova visão eckhartiana, equidistante dos termos da disputa tradicional, a beatitude não reside nem no conhecimento nem no amor, mas em “algo (Etwas) na alma, de onde emanam conhecimento e amor” e que “não conhece e não ama”, “não tem antes nem depois”, nada espera e “não pode nem ganhar nem perder”. Isso não sabe ser Deus que em si opera, sendo pura auto-fruição divina, e é também neste sentido que o ser humano deve permanecer “quite e livre”, sem nada saber acerca do operar divino em si, pois Deus, ao contrário da doutrina tradicional dos “mestres”, “não é Ser nem intelectual” , consistindo antes num estar livre “de todas as coisas” que é a razão pela qual “é (...) todas as coisas”. O nada saber, “nem de Deus, nem da criatura, nem de si mesmo”, é a “pobreza” de nada retirar nem acrescentar a esta divina liberdade, riqueza e plenitude.
O terceiro e para Eckhart mais claro aspecto desta pobreza ou liberdade radical é o nada ter, no sentido mais profundo de nem sequer haver no ser humano um lugar distinto onde Deus possa operar, de modo a que Deus não opere senão em si mesmo ao operar “na alma”. “O homem padece assim Deus em si”, tão “livre de todas as criaturas e de Deus e de si mesmo” que não mantenha qualquer “lugar” ou “distinção” própria, reencontrando “o ser eterno que foi, que é agora e que permanecerá para sempre”.
É neste contexto que Eckhart volta a rogar a Deus que o livre de Deus, pois o seu “ser essencial” (wesentliches Sein) está acima de Deus enquanto o concebemos como origem das criaturas”. Na verdade, como reitera, é nisso que em Deus está “acima de todo o ser e acima de toda a diferença” que ele próprio residia (e reside), na imanência primordial onde é eterna causa de si mesmo. Aí é “não-nascido” (ungeboren) e como tal não pode morrer, sendo eternamente, agora e para sempre. Noutra perspectiva, é nesse seu “nascimento (eterno)” que tudo nasce, é nesse advir atemporal que é causa de si e de todas as coisas, incluindo do Deus que é Deus (nas e para as criaturas), o que lhe permite afirmar que, caso o quisesse, nada seria, nem ele, nem Deus, nem todas as coisas.
Segundo um “grande mestre” que não identifica, a “abertura” ou “trespasse” (Durchbrechen) é “mais nobre” do que o “sair” ou “emanar” (Ausflieβen), pois este é o devir criatura, que, ao instituir o humano, co-
-institui Deus e o mundo como seus correlatos, ao passo que o primeiro – esse “romper através”, Durch-brechen – é uma libertação radical de todas as determinações, pela qual não se é “nem Deus nem criatura” e se reassume a plena, primordial e atemporal indeterminação ou infinidade. O Durchbrechen é uma “elevação” ou “des-envolvimento” (Aufschwung) pelo qual se recupera uma “riqueza” superior a Deus e a todas as suas obras e que não é outra senão a unicidade com Deus: “ich und Gott eins sind” (“Eu e Deus somos um”). Isso é o que sempre se é, sem aumento nem diminuição, “uma causa imóvel, que faz mover todas as coisas”. E essa é a “suma pobreza”, a de não haver/ser menos que o Infinito.
Eckhart conclui exortando a que não se aflija quem não compreender ”este discurso”, pois expressa uma “verdade desencoberta (unverhüllte Wahrheit) vinda directamente / sem mediação (unmittelbar) do coração de Deus”, que só poderá ser compreendida quando o ser humano se igualar a tal verdade.
Paulo Borges, Do Vazio ao Cais Absoluto ou Fernando Pessoa entre Oriente e Ocidente
O estado de consciência de base em relação ao qual se fala de um “estado alterado de consciência” é o “estado comum de consciência”, sendo todavia fundamental recordar que este “não é algo natural ou dado, mas antes uma construção altamente complexa, um instrumento especializado para lidar com o nosso ambiente e com as pessoas nele”, sendo útil para fazer algumas coisas, mas inútil ou perigoso para outras. O estado comum de consciência é assim construído mediante a selecção que cada cultura faz do vasto potencial de consciência inerente ao ser humano, escolhendo e desenvolvendo um pequeno número apenas das suas possibilidades, rejeitando outras e ignorando muitas. Essa actualização de uma determinada e reduzida parte do campo de todos os possíveis e outros factores ocasionais são os elementos estruturais do estado comum de consciência. Nesta perspectiva, pode dizer-se que “somos simultaneamente os beneficiários e as vítimas da particular selecção da nossa cultura” e ao mesmo tempo compreender que o enorme interesse dos estados alterados de consciência resida na “possibilidade de usar e desenvolver potenciais latentes que residem fora da norma cultural”. O interesse dos estados alterados de consciência aumenta à medida que se reconheça que muitos dos contornos dessa “norma cultural” constituem na verdade uma “normose”, ou seja, uma “patologia da normalidade”, que impede a plena realização do melhor potencial humano, prendendo indivíduos e grupos no medo de ser quem no fundo são, com toda a alienação, conflitos e sofrimento resultantes. Alguns dos estados alterados de consciência – não todos, pois muitos podem ser tão ou mais condicionadores e patológicos do que o estado comum de consciência – podem assim ser reconhecidos e apreciados como aberturas da mesma consciência para dimensões mais amplas e plenas de si e do real, aquilo que Stanislav Grof vê como o potencial heurístico e curativo do holotropismo (a orientação para o todo) das “emergências espirituais”, que podem constituir o caminho por excelência para a evolução humana e a superação da crise da civilização.
Seria aqui interessante recordar que “realidade” vem do latim res (coisa) e este, segundo alguns, do proto-itálico reis, por sua vez procedente do proto-indo-europeu reh, ís, com o significado de “riqueza, bens”, afim ao antigo persa rāy- (paraíso, riqueza), ao avéstico rāy-, com o mesmo sentido (paraíso, riqueza), e ao sânscrito rayí (propriedade, bens). Se real designa originariamente o que é rico, pleno, bom, abundante, podemos indagar se o estado comum de consciência, ao actualizar apenas um restrito leque de potencialidades da mesma, não se priva implicitamente da plenitude do real, reduzindo-o ao que se limita a ser o objecto configurado ou construído nas estruturas, quadros e categorias dessa sua percepção limitada. Ao escrever isto estamos uma vez mais conscientes de que a categoria de “estado alterado de consciência” é muito ampla e inclui experiências extremamente distintas, quanto à sua origem, natureza e efeitos, abrangendo quer processos de ampliação e subtilização, quer de redução e regressão, da consciência e da experiência de si e do mundo.
Paulo Borges, Do Vazio ao Cais Absoluto ou Fernando Pessoa entre Oriente e Ocidente