Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Ver o que acontece aqui, onde não há ninguém, onde nada acontece, arranjar maneira de aqui acontecer qualquer coisa, haver alguém, pôr fim a isto, fazer silêncio, ir no silêncio, ou noutro ruído, um ruído de vozes diferentes das vozes de vida e de morte, de vidas e mortes que não querem ser as minhas, ir na minha história, para poder sair dela, não, é tudo treta. Será possível que acabe por me crescer uma cabeça que seja minha e onde possa preparar venenos dignos de mim, e pernas para andar a pé, estaria finalmente, aqui, poderia ir-me embora, não peço mais nada, não, não posso pedir nada. Nada a não ser a cabeça e as duas pernas, ou uma só, no meio, ir-me-ia embora, ao pé-coxinho. Ou apenas a cabeça, muito redonda, muito lisa, não é preciso haver feições, e eu rolaria, pelas encostas abaixo, quase um puro espírito, não, não resultaria, a partir daqui é tudo a subir, tem de haver a perna, ou coisa que o valha, talvez uns anéis, contrácteis, com uns anéis vai-se longe. Que mal há em partir da porta do Duggan, por uma manhã de Primavera chuvosa e soalheira, sem saber se se pode chegar à noite? Seria tão fácil. Que mal há em estar escondido nesta carne ou noutra qualquer, neste braço apertado por uma mão amiga, e nesta mão, sem braço, sem mãos, e sem alma nestas almas trementes, através da multidão, no meio dos arcos, das bolas? Não sei, o que sei é que estou aqui e continuo a não ser eu, é com isso que tenho de me contentar. Não há carne em lado nenhum, nem nada que ajude a morrer. Esquece isso tudo, querer esquecer isso tudo, sem saber o que isso tudo significa, é fácil de dizer, é fácil de fazer, em vão, nada mexeu, ninguém falou. Aqui, aqui nada acontecerá, aqui não haverá ninguém, tão cedo. As partidas, as histórias, não estão para breve. E as vozes, venham elas de onde vierem, estão bem mortas.
Samuel Beckett, Novelas e Textos para Nada
Isto vai avançando, vai avançando, e quando aparecem os que me conheceram, vá, vá, é como se, não, é prematuro. Mas eu apareço, cucu cá estou eu outra vez, a bem da causa, como a raiz quadrada de menos um, fiz os meus estudos clássicos, ora vamos lá ver, esta cabeça lívida, mascarrada de tinta e de compota, caput mortuum de uma juventude estudiosa, orelhas de abano, olhos revirados, cabelos ralos, boca a espumar, e a mastigar, o que é que ela está a mastigar, uma baba, uma prece, uma lição, um pouco de cada, uma prece aprendida para o que der e vier, antes do fim da alma, e que aflora, de través, na velha boca já sem palavras, na velha cabeça que já não ouve, estou velho, foi rápido, um velho baboso, que fez os seus estudos clássicos, no urinol de dois lugares da Rue Guynemer, onde a água escorrendo faz o mesmo ruído de há sessenta anos, o meu urinol predilecto, por causa do ruído da água, parece a minha mãe a assobiar, com a testa encostada ao tabique, no meio dos grafitos, gemendo da próstata, escarrando avés, de braguilha abotoada, não estou a inventar nada, por distracção, ou cansaço a mais, ou indiferença, ou de propósito, para gozar melhor, sei bem o que digo, ou maneta, é melhor maneta, sem mãos, sem braços, é preferível assim, velho como o mundo, lixado como o mundo, amputado por todos os lados, de pé sobre os meus cotos fiéis, a rebentar de mijo velho, de velhas preces, de velhas lições, lado a lado carcaça, alma e crânio, já para não falar dos escarros, não falemos dos escarros, dos soluços transformados em muco, vindos do coração, estou completo, não contando com algumas extremidades, fiz os meus estudos clássicos, depois envelheci, mas sem me orgulhar disso, sem reivindicar nada, num sobressalto de ejaculações, Jesus, Jesus. Noites, noites, mas que noites, feitas de quê, e quando, não sei, de sombra amiga, de céus amigos, de um tempo satisfeito, de um tempo de tréguas, antes da meia-noite, não sei, sei tanto como então, quando dizia para comigo, cá de dentro, ou lá de fora, da noite que chegava ou de debaixo da terra, de longe em todo o caso, Onde é que eu estou, para só falar do lugar, e como é que fui feito, e desde quando, só para falar do tempo, e até quando, e quem é este idiota que não sabe para onde há-se ir, que não pode parar, que se tomava por mim e por quem eu me tomava, disparates, a mesma cantiga de sempre.
Samuel Beckett, Novelas e Textos para Nada
Tenho o dia todo, para me iludir, para me recompor, para me acalmar, para desistir, não tenho nada a temer, o meu bilhete é válido para toda a vida.
Samuel Beckett, Novelas e Textos para Nada
Que mal há em estar escondido nesta carne ou noutra qualquer, neste braço apertado por uma mão amiga, e nesta mão, sem braço, sem mãos, e sem alma nestas almas trementes, através da multidão, no meio dos arcos, das bolas? Não sei, o que sei é que estou aqui e continuo a não ser eu, é com isso que tenho de me contentar. Não há carne em lado nenhum, nem nada que ajude a morrer. Esquece isso tudo, querer esquecer isso tudo, sem saber o que isso tudo significa, é fácil de dizer, é fácil de fazer, em vão, nada mexeu, ninguém falou. Aqui, aqui nada acontecerá, aqui não haverá ninguém, tão cedo. As partidas, as histórias, não estão para breve. E as vozes, venham elas de onde vierem, estão bem mortas.
Samuel Beckett, Novelas e Textos para Nada
A minha vida é esta, porque não, é uma vida, se assim o quiserem, se levarem isso muito a peito, não digo que não, esta noite. É preciso ter uma vida, segundo parece, se já há palavra, não é preciso haver história, não é obrigatório haver uma história, basta uma vida, ora aí está o mal que eu fiz, um dos males, querer ter uma história, quando só a vida basta .
Samuel Beckett, Novelas e Textos para Nada