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Carl (2)

Valha-me Deus!

Um dia de Verão em que não choveu senti vontade de fazer exercício ou, ao menos, dar uma volta pelo quarteirão. A ideia animou-me, de repente dei-me conta de que há muito tempo que não me sentia de tão bom humor. Estava tanto calor que pensei que podia pôr cuecas curtas, mas ao procurá-las lembrei-me de que as tinha deitado fora no ano anterior, num ataque de melancolia. Não obstante, a ideia das cuecas curtas tornou-se tão imperiosa que cortei as pernas das ceroulas que tinha vestidas. Nunca somos demasiado velhos para deixar de ter esperança.

Era estranho sair depois de tanto tempo, apesar de tudo ainda me ser familiar, como é obvio. Irei escrever sobre isto, pensei, e de repente senti uma erecção, mesmo no meio do passeio, mas não importava, porque os bolsos das minhas calças eram largos e fundos.

Ao chegar à primeira esquina – demorou algum tempo, o espírito estava determinado, mas as pernas eram fracas – percebi que afinal não me apetecia dar uma volta pelo quarteirão. Seja como for, uma vez que era Verão queria ver algo verde, nem que fosse apenas uma árvore, por isso continuei em frente. Estava calor, tanto calor como quando era pequeno, pelo que me alegrei por levar as cuecas curtas. E com a erecção sob um hábil controlo, sentia-me bem. Pode soar exagerado, mas assim era.

Quando já quase havia deixado para trás três casas, ouvi alguém gritar pelo meu nome. Embora soasse a voz de velho não me virei, pois há muita gente que se chama Thomas. Mas à terceira vez, olhei na direcção de onde partia a voz, era um dia tão fora do comum, tudo podia acontecer. E quem ali estava, no passeio do outro lado da rua, senão o velho professor Storm. “Félix”, gritei, mas estava tão pouco acostumado a usar a voz que o grito não saiu grande coisa. Separava-nos um denso trânsito, e nem ele nem eu nos atrevíamos a atravessar a rua, teria sido um disparate perder a vida de pura alegria depois de me ter aguentado sem ela durante tanto tempo. De modo que a única coisa que pude fazer foi gritar pelo nome dele uma vez mais e acenar-lhe com a minha bengala. Foi uma grande desilusão, mas ao menos era um consolo saber que ele me tinha visto e chamado pelo meu nome. “Adeus, Félix”, gritei, e dispus-me a seguir o meu caminho.

Mas quando cheguei ao cruzamento seguinte lá estava ele, mesmo à minha frente, pelo que tinha ficado triste sem motivo algum. “Thomas, meu velho amigo”, disse ele, “por onde tens andado?” Não lhe queria dizer, por isso não lhe respondi, mas disse: “o mundo é grande, Félix.” “E todos estão mortos ou quase mortos.” “Sim, a vida com a vida se há-de pagar.” “Bem dito, Thomas, bem dito.” A mim não me pareceu nada bem dito, e quase para me tornar merecedor dos seus elogios, disse: “Enquanto tivermos sombra, há vida.” “Oh, nem mais, a maldade não tem fim.” Foi nesse momento que comecei a perguntar-me se ele não estaria senil, e decidi pô-lo à prova: “O problema não é a maldade”, disse eu, “mas a insensatez, como por exemplo a dos jovens montados nessas motos enormes.” Olhou-me por algum tempo e então disse: “Creio que agora não entendo muito bem onde estás a querer chegar.” Como não tinha a mínima pretensão de me vangloriar à sua custa, limitei-me a dizer, como que por casualidade: “Bem, e o que é a maldade afinal?” Naturalmente ele não sabia o que responder, não era teólogo, de maneira que me apressei a acrescentar: “Mas não falemos disso agora – como tens passado?” Era evidente que o havia posto de mau humor, porque olhou para o relógio atentamente e depois disse: “Sempre que me encontro com alguém, sinto-me cada vez mais só.” Não era uma frase particularmente agradável, mas continuei como se nada fosse: “Pois”, disse eu, “assim são as coisas”. Dei-me conta de que se não me apressasse a dizer adeus, ele acabaria por fazê-lo primeiro, mas não fui suficientemente rápido, de modo que se me adiantou: “Mas agora tenho de ir, Thomas, deixei as batatas ao lume.” “Ah, claro, as batatas”, respondi. Estendi-lhe a mão e disse: “Bem, para o caso de não nos voltarmos a ver…” Deixei as palavras suspensas no ar, porque era uma dessas frases que soam melhor inacabadas. “Sim”, disse, apertando-me a mão. “Adeus, Félix.” “Adeus, Thomas.”

Dei meia volta e regressei a casa. Não tinha visto nada verde, mas, valha-me Deus, tantos acontecimentos num só dia!       

Kjell Askildsen, conto incluído na colectânea Um Repentino Pensamento Libertador

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