Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]


As pessoas do café (4)

Maria

Uma vez no Outono encontrei-me inesperadamente com a minha filha Maria no passeio em frente da relojoaria. Estava mais magra, mas não tive problemas em reconhecê-la. Não me lembro já o que estava a fazer na rua, mas tinha de tratar-se de algo importante, porque foi depois do corrimão da escada se ter partido, de maneira que na verdade eu já tinha deixado de sair à rua. Seja como for, encontrei-a, e pensei por um instante: Que estranha coincidência ter saído hoje. Pareceu ficar contente por me ver, porque disse “pai” e deu-me a mão. De todos os meus filhos ela era a minha preferida, e quando era pequena dizia muitas vezes que eu era o melhor pai do mundo. E então costumava cantar para mim, um pouco desafinada, é certo, mas não por culpa própria, pois herdara isso da mãe. “Maria”, disse eu, “és realmente tu, estás com óptimo aspecto”. “Sim, bebo urina e sou vegetariana”, respondeu ela. Não pude conter o meu riso, há muito tempo que não me ria, imaginem só, tinha uma filha com sentido de humor, inclusive com um humor um pouco atrevido, quem haveria de dizer, foi um lindo momento. Mas equivoquei-me, nunca somos suficientemente velhos para deixarmos para trás as nossas ilusões. A minha filha olhou-me com uma expressão de espanto e foi como se o seu olhar se desvanecesse. “Estás a fazer pouco de mim”, disse ela, “não sabes do que se trata”. “Pareceu-me ter-te ouvido dizer urina”, respondi eu, dizendo a verdade. “Urina, sim, tornei-me outra pessoa.” Disso não tive a mínima dúvida, era lógico, deve ser impossível continuar a ser a mesma antes e depois de começar a beber urina. “Está bem, está bem”, disse eu num tom ameno e querendo falar de outra coisa, talvez de algo agradável, nunca se sabe. Então reparei que ela trazia uma aliança e disse: “E casaste, estou a ver.” Ela olhou para o anel. “Ah, isto”, disse ela, “uso-o apenas para manter os chatos à distância”. Isto, sim, teria de ser uma brincadeira, fazendo um cálculo rápido concluí que ela teria pelo menos uns cinquenta e cinco anos, e nem sequer era tão bonita quanto isso. Então voltei a rir-me pela segunda vez em tanto tempo, e tudo no meio do passeio. “De que te ris?”, perguntou ela. “Creio que começo a ficar velho”, respondi eu, quando percebi que me havia equivocado uma vez mais. “Então é assim que se faz hoje em dia?” Ela não respondeu, por isso fiquei sem saber, mas suponho e espero que a minha filha não seja particularmente representativa dos novos tempos. Mas que fiz eu para ter estes filhos?

Ficámos um instante calados, e pensei que era altura de dizer adeus, um encontro inesperado não deve durar demasiado, mas nesse exacto momento ela perguntou-me se eu me encontrava bem. Não sei onde ela queria chegar, mas disse a verdade, que a única coisa que me importunava eram as minhas pernas. “Já não querem o que eu quero, os meus passos são cada vez mais curtos, daqui a pouco não vou conseguir mexer-me.” Não sei por que motivo lhe falei tanto sobre as minhas pernas, e tornou-se óbvio que não o deveria ter feito. “Deve ser da idade”, disse ela. “Claro que é da idade”, disse eu, “o que mais poderia ser?” “Mas suponho que já não precisas de lhes dar tanto uso, não é?” “Se tu o dizes”. Ao menos captou a ironia, direi isso em seu favor, e irritou-se, mas não consigo mesma, porque disse: “Tudo o que digo está mal.” Não soube o que responder, o que poderia ter dito? Então limitei-me a sacudir a cabeça de forma conscientemente evasiva, já há demasiadas palavras em circulação no mundo e quem fala muito não tem mão no que diz.

“Bom, é melhor ir andando”, disse a minha filha após uma breve pausa, mas suficientemente longa, “tenho de ir ao ervanário antes que feche. Até à próxima.” E deu-me a mão. “Adeus, Maria”, disse eu. E segui o meu caminho. Esta era a minha filha. Sei que tudo tem a sua lógica inerente, mas nem sempre é fácil descobri-la.      

Kjell Askildsen, conto incluído na colectânea Um Repentino Pensamento Libertador

Autoria e outros dados (tags, etc)




Arquivo

  1. 2025
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2024
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2023
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2022
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2021
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2020
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2019
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2018
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2017
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2016
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2015
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2014
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D

Mais sobre mim

foto do autor