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Maria (5)
A Sr.ª M.
Uma das poucas pessoas que sabe que ainda existo é a Sr.ª M. da loja da esquina. Duas vezes por semana traz-me aquilo de que preciso para viver, mão não é que seja um grande fardo para ela. Vejo-a muito raramente porque tem uma chave do apartamento e deixa as compras à porta, é a melhor forma, assim protegemo-nos mutuamente e mantemos uma relação pacífica, quase diria amigável. Mas um dia em que a ouvi levar a chave à porta para entrar, vi-me obrigado a chamá-la. Tinha caído e batido com o joelho, e não era capaz de chegar ao sofá. Por sorte, era um dos dias em que calhava vir com as compras, pelo que não tive de esperar mais do que quatro horas. Então chamei-a. Quis logo mandar vir um médico, mas as suas intenções eram boas, só a família mais chegada chama o médico por má-fé, sempre que querem livrar-se dos velhos. Expliquei-lhe tudo o que era preciso saber sobre hospitais e lares de idosos sem bilhete de retorno e, amável como era, pôs-me uma compressa. Depois preparou três sanduíches que me deixou numa mesa junto à cama, para além de uma garrafa de água. Por fim trouxe uma leiteira antiga que tinha encontrado na cozinha. “Para o caso de precisar”, disse ela.
E então saiu. À noite comi uma das sanduíches, e enquanto estava a comer ela apareceu para saber de mim. Foi tão inesperado que tenho de admitir que me deixei levar pelos sentimentos, e disse: “Que boa pessoa que a senhora é!” “Então, então”, respondeu laconicamente, começando a mudar-me a compressa no joelho. “Isto vai ficar bom”, disse ela, e continuou: “Então não quer saber dos lares de idosos. Mas sabe que agora já não lhe chamam lares de idosos, mas lares de terceira idade.” Fartámo-nos de rir os dois acerca disso, o ambiente ficou quase alegre. É um prazer enorme conhecer pessoas com sentido de humor.
A perna doeu-me durante quase uma semana e todos os dias vinha ver-me. No último dia disse-lhe: “Agora estou bem outra vez, graças a si.” “Nada de cerimónias”, interrompeu ela, “correu tudo lindamente”. Nisso tive de lhe dar razão, mas insisti que, sem ela, a minha vida podia ter tomado um rumo infeliz. “Oh, teria dado a volta de uma maneira ou de outra”, respondeu, “o senhor é muito obstinado. Tinha um pai que se parecia com o senhor, por isso sei muito bem do que estou a falar.” Senti que estava a tirar conclusões com base em factos pouco sólidos, afinal de contas não me conhecia, mas não quis que parecesse uma reprimenda, de modo que me limitei a dizer: “Receio que me tenha numa conta demasiado alta.” “Oh, não”, respondeu, “devia tê-lo conhecido, era um homem extremamente teimoso e difícil”. Disse-o com toda a seriedade, admito que me impressionou, fiquei com vontade de rir de alegria, mas mantive uma cara séria e disse: “Estou a ver. E o seu pai também viveu até ficar muito velho?” “Oh, sim, muito velho. Falava sempre com desdoiro da vida, mas nunca conheci ninguém que se esforçasse tanto por não a perder.” A isto podia sorrir sem problemas; era libertador, até me ri um pouco, e ela também. “Suponho que o senhor também seja assim”, disse ela, e impulsivamente perguntou-me se lhe deixava ler a mão. Estendi-lhe uma, não me recordo qual, mas era a outra que queria. Observou-a por alguns instantes e então sorriu e disse: “Tal como eu pensava, o senhor já devia ter morrido há muito tempo.”
Kjell Askildsen, conto incluído na colectânea Um Repentino Pensamento Libertador