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A Sr.ª M. (6)
O corrimão
Há alguns meses recebi a visita do meu senhorio. Tocou três vezes à porta antes que me desse tempo de abrir, isto apesar de ter ido o mais depressa que pude. Não podia saber que era ele. É raro alguém vir aqui, e quase todos são representantes de seitas religiosas a perguntar se estou em paz com Deus. Dá-me um certo prazer, mas nunca os deixo passar da porta, pois as pessoas que acreditam na vida eterna não são racionais, nunca se sabe o que podem acabar por fazer. Mas desta vez era, como já disse, o senhorio. Havia-lhe escrito há quase um ano para lhe dar conta de que o corrimão das escadas estava partido, e pensei que vinha por esse motivo, por isso deixei-o entrar. Olhou à sua volta. “O senhor vive bem aqui”, disse ele, e a afirmação foi tão tendenciosa que me fez logo ver que deveria ter cautela. “O corrimão das escadas está partido”, disse eu. “Sim, já vi, foi o senhor que o partiu?” “Não, porque haveria de ter sido eu?” “Suponho que é o único que o usa, porque, tirando o senhor, só vive gente nova neste prédio e não me parece que o corrimão se parta sozinho, não acha?” Era obviamente uma pessoa intratável e não quis entrar em nenhuma discussão com ele sobre como e porquê se partem as coisas, de modo que disse laconicamente: “Como quiser, mas preciso desse corrimão e tenho o direito de tê-lo.” Não respondeu e, em vez disso, disse apenas que a renda iria subir vinte por cento a partir do mês seguinte. “Outra vez?” disse, “e logo vinte por cento”. “Deveria ser mais”, respondeu, “este prédio só dá prejuízo, estou a perder dinheiro com ele.” Há muito tempo que deixei de discutir economia com pessoas que dizem perder dinheiro com algo de que se poderiam ter visto livres há trinta anos, de modo que não disse nada. Mas não precisou de uma resposta para continuar com o tema, ele era daquele tipo de pessoas que continuam sozinhas. Pôs-se a dissertar sobre todos os outros prédios que também davam prejuízo, era penoso ouvi-lo, devia ser um capitalista miserável. Mas eu não disse nada, e por fim cessaram as lamentações, já ia sendo tempo. Em vez disso perguntou-me, sem nenhuma razão aparente, se acreditava em Deus. Estive a ponto de perguntar a que deus se referia, mas limitei-me a negá-lo com a cabeça. “Mas tem de acreditar”, disse ele, afinal de contas sempre havia deixado entrar um deles em casa. Para dizer a verdade não me surpreendeu muito, uma vez que é bastante comum que as pessoas com muitas propriedades acreditem em Deus. Não quis, porém, dar azo a que passasse a outro tema, pois havia decidido uma vez por todas não deixar passar da porta nenhum evangelista, de modo que não o deixei continuar. “Então a renda vai subir vinte por cento”, disse-lhe, “suponho que seja esse o motivo da sua visita”. A minha resistência pareceu apanhá-lo de surpresa, pois abriu e fechou a boca um par de vezes sem que dela saísse qualquer som, algo que, presumo, deve ser pouco típico nele. “E espero que trate de mandar reparar o corrimão”, continuei. A sua cara pôs-se vermelha. “O corrimão, o corrimão” disse ele impacientemente, “não pára de fazer barulho acerca do corrimão”. Pareceu-me uma coisa inconveniente de ser dita e irritei-me um pouco. “Mas não entende”, disse eu “que de certa forma esse corrimão é tudo o que tenho para me agarrar à vida”. Arrependi-me assim que o disse, pois formulações precisas devem reservar-se a pessoas que se dispõem a pensar, de outro modo dá confusão. E confusão foi o que deu. Não tenho forças para repetir o que me disse, mas tratava-se em larga medida do que vem depois da morte. No final disse qualquer coisa sobre estar com os pés para a cova, referindo-se a mim, claro, e então zanguei-me. “Deixe de me aborrecer com as suas finanças”, disse-lhe, porque na verdade era do que se tratava, e como não se dispunha a sair logo, permiti-me dar uma pancada com a bengala no chão. Então saiu. Foi um alívio, senti-me contente e livre durante vários minutos, e recordo-me de ter dito a mim mesmo, para os meus botões, claro: “Não desistas, Thomas, não desistas.”
Kjell Askildsen, conto incluído na colectânea Um Repentino Pensamento Libertador