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O corrimão (7)
O tumulto
Quando leio ou estou ocupado a resolver um problema de xadrez, costumo sentar-me junto à janela olhando para a rua. Nunca se sabe se vai acontecer algo que mereça a pena presenciar, apesar de ser pouco provável; a última vez foi há três ou quatro anos. Mas as coisas do dia-a-dia também podem oferecer um pouco de distração, e há sempre pelo menos uma ou outra coisa a mexer fora da janela, enquanto aqui dentro só mesmo eu e o ponteiro do relógio.
Mas há três ou quatro anos vi algo estranho, e foi a última coisa extraordinário que vi, embora, como já disse, não seja indiferente às ocorrências mais vulgares, por exemplo, pessoas que se envolvem em brigas, trocando socos e pontapés, ou gente que cai no passeio e que não se levanta por estar demasiado bêbeda ou doente para encontrar o caminho de casa, se é que a têm; muitos deles suponho que não a têm, não há casas suficientes no mundo.
Mas o que vi daquela vez foi diferente. Deve ter sido na Páscoa ou no Pentecostes, porque não era Inverno, e lembro-me de ter pensado que uma manifestação daquele tipo estaria muito provavelmente relacionada com uma das festas religiosas.
A minha janela dá para uma travessa, tão curta que a posso ver inteira sem a mínima dificuldade, tenho boa vista.
Estava sentado a olhar para duas moscas que copulavam no parapeito da janela, de modo que o mais provável era ser Pentecostes, servia-me um pouco de distração observá-las, embora praticamente não se movessem. Não me excitei ao observá-las, como me recordo que acontecia quando era mais novo – oh, recordo-me muito bem.
Seja como for, ali estava eu sentado a observar as duas moscas, e tinha acabado de tocar levemente na asa da fêmea e depois na do macho sem que dessem conta de nada, o que me pareceu estranho, porque o macho estava em cima da fêmea há pelo menos dez minutos, não estou a exagerar. Devia ter dedicado mais tempo da minha vida a estudar insectos, se bem que, na realidade, para quê? Bem, mas foi nesse momento que avistei um homem na ponta mais distante da rua, um homem que se comportava de forma muito suspeita. Era como se estivesse a bater os braços, e então gritou qualquer coisa, algo que no início não entendi. De certa forma, era um homem sistemático e com um peculiar sentido de ordem espacial, pois caminhava ou corria desde a primeira janela do lado direito da rua até à primeira janela do lado esquerdo, e assim por diante, batendo em todas as janelas antes de gritar qualquer coisa. Era fora do comum e estranho, e então abri a janela, foi antes de se estragarem as dobradiças, e ouvi-o gritar: “Jesus chegou.” Mas também gritava mais qualquer coisa, algo parecido com “Eu cheguei”. E quando se aproximou, pude ouvir que estava certo, era isso que gritava. “Jesus chegou, eu cheguei.” E não parava de correr de um lado para o outro da rua, batendo em todos os vidros das janelas que podia alcançar. Era um espectáculo revoltante, a loucura religiosa é revoltante.
A primeira reacção foi tão surpreendente quanto apropriada: Do alto de um quarto piso, saiu disparado um tamborete que aterrou algures no meio da rua. Não lhe acertou, o que, espero, não era sequer a intenção, mas desfez-se em pedaços, claro. Foi um esforço inglório, pois apenas fez o homem vociferar ainda mais, talvez lhe fizesse falta essa confirmação de que estava numa missão importante.
A reacção seguinte foi semelhante à primeira, mas menos concreta, e não sem o seu quê de humor. Uma janela escancarou-se e uma voz enfurecida gritou: “Você está doido varrido, homem!” Só então me dei conta de que o homem na rua era de facto perigoso, que despertava instintos latentes em alguns dos seus semelhantes, e então pensei: Não haverá aqui nenhuma pessoa sensata com um par de pernas saudáveis que possa descer e pôr um fim a tudo isto? Pouco a pouco umas quantas cabeças foram espreitando para fora das janelas ao longo da rua, mas lá em baixo aquele louco continuava a dominar a situação.
Sentia-me fascinado, tenho de admitir, mas com o passar do tempo talvez mais por todo o espectáculo na rua do que pelo protagonista. As pessoas haviam começado a manifestar-se, riam e gritavam umas para as outras por cima da cabeça do pobre coitado, eu nunca tinha visto nada assim, tanto contacto social instantâneo, houve até um homem no prédio ao lado que me gritou algo. Só entendi a última palavra, “blasfémia”, e obviamente não respondi. Se ao menos tivesse dito algo sensato, como por exemplo, “urgências”, então talvez, quem sabe, fosse possível estabelecer qualquer espécie de contacto de cortesia de janela a janela. Mas não tinha a mínima vontade de ter uma relação de cortesia com um homem adulto – ele tinha idade suficiente para ser filho da minha mulher há muito falecida – a quem não ocorre nada mais sensato para dizer que “blasfémia”, ainda não me sinto assim tão só.
Mas basta deste assunto. Eu estava, como disse, fascinado pelo bulício da vida nas janelas, recordava-me a minha infância, suponho que era melhor ser velho nesse tempo, menos solitário, penso eu, e, sobretudo, morria-se mais ou menos na idade adequada. Eis senão quando um homem aparece disparado de uma porta. Saiu cheio de pressa e direito ao louco. Agarrou-o por trás, deu-lhe a volta e bateu-lhe com tanta força no rosto que fez com que cambaleasse e caísse. Por um instante a rua ficou em completo silêncio, como se ninguém de atrevesse a respirar. Mas logo voltou o pandemónio e agora não restavam dúvidas de que o desagrado se dirigia ao agressor. As pessoas não tardaram a sair para a rua, e enquanto o causador imediato de todo o tumulto estava sentado, calado e aparentemente desconcertado, a alguns metros de distância, deu-se início a uma acalorada discussão da qual era impossível captar todos os detalhes, mas era evidente que o agressor também tinha os seus apoiantes, pois de repente dois jovens lançaram-se à garganta um do outro. Oh, que dia tão negro para a sensatez!
Entretanto, o louco havia-se levantado, e enquanto os jovens lutavam – muito provavelmente por causa dele, mas possivelmente por motivos bastante diferentes – e algumas das outras pessoas tentavam separá-los, ele retrocedia, distanciando-se cada vez mais, até que chegou à esquina mais próxima, deu a volta e pôs-se a correr. Foi um alívio, e há que dizer que ele sabia correr!
Quando a multidão na rua se deu conta de que o homem tinha desaparecido, a calma foi lentamente regressando e as janelas foram-se fechando umas atrás das outras. Fechei também a minha, não era um dia de calor. O mundo está repleto de insensatez e confusão, a falta de liberdade tem raízes profundas, a esperança pela igualdade vai diminuindo, as forças superiores são demasiado grandes, ao que parece. Temos de nos dar por satisfeitos por vivermos tão bem, dizem as pessoas, a maioria das pessoas vive pior. E depois tomam um comprido para as insónias. Ou para a depressão. Ou para a vida. Quando chegará uma nova geração que entenda o significado da palavra igualdade, uma geração de jardineiros e engenheiros florestais que derrube as grandes árvores que dão sombra a todas as pequenas, e que arranque os rebentos idiotas da árvore do conhecimento?
Kjell Askildsen, conto incluído na colectânea Um Repentino Pensamento Libertador