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O tumulto (8)

No barbeiro

Há já muitos anos que deixei de ir ao barbeiro, o mais perto fica a cinco quarteirões daqui, o que se tornou bastante longe com o passar do tempo, mesmo quando o corrimão das escadas ainda não estava partido. Mas o escasso cabelo que me resta posso cortá-lo sozinho, e é isso que faço, quero conseguir olhar-me no espelho sem ficar demasiado deprimido, e também arranco sempre os pêlos mais longos do nariz.

Mas um dia, há menos de um ano, e por razões que não me quero alongar aqui, sentia-me particularmente só e passou-me pela cabeça ir cortar o cabelo, apesar de não estar nada comprido. Verdade seja dita que tentei convencer-me a não ir, é demasiado longe para ir a pé, disse a mim mesmo, as tuas pernas já não dão para isso, vais demorar pelo menos três quartos de hora a ir, e outro tanto a voltar. Mas de nada serviu. E depois?, respondi, tenho tempo de sobra, tempo é a única coisa que tenho de sobra.

De modo que me vesti e saí. Não tinha exagerado, demorou bastante tempo; nunca ouvi falar de alguém que ande tão devagar quanto eu, é um tormento, teria preferido ser surdo-mudo – pois de que vale ouvir, e para quê falar, quem ouve, e há ainda alguma coisa por dizer? Bem, haver há, mas quem ouve?

Por fim cheguei. Abri a porta e entrei. Oh, como o mundo muda. Lá dentro estava tudo diferente, apenas o barbeiro era o mesmo. Cumprimentei-o, mas não me reconheceu. Foi uma decepção, embora, naturalmente, tenha agido como se nada fosse. Não havia nenhuma cadeira livre. Eram três pessoas a fazer a barba ou a cortar o cabelo, outras quatro esperavam, e não havia nenhuma cadeira livre. Eu estava muito cansado, mas ninguém se levantou, aqueles que estavam à espera eram demasiado novos, não sabiam o que quer dizer velhice. Então virei-me para a janela e fiquei a olhar para a rua, fazendo de conta que era isso que queria, para que ninguém sentisse pena de mim. Aceito a cortesia, mas a compaixão podem guardá-la para os animais. Tenho visto com demasiada frequência – embora seja verdade que já faz algum tempo, mas ter-se-á o mundo tornado mais humano entretanto? -, tenho visto com demasiada frequência como os mais novos passam com total indiferença por cima de pessoas desamparadas estendidas no passeio, mas que mal metem a vista num gato ou cão feridos, derretem-se-lhes os corações. “Pobre cão”, dizem, ou “Gatinho, coitadinho, estás ferido?” Oh, há muitos amantes dos animais!

Afortunadamente não tive de ficar em pé mais do que cinco minutos, e foi um alívio poder sentar-me. Mas ninguém falava. Outrora, noutros tempos, o mundo inteiro, do lugar mais próximo ao mais longínquo, era atraído para dentro da barbearia. Agora reinava o silêncio, tinha feito todo aquele caminho em vão, já não existia mundo algum de que se quisesse falar. De modo que ao cabo de algum tempo decidi levantar-me e sair. Que sentido fazia continuar ali? O meu cabelo afinal nem sequer estava comprido. E ainda poupei dinheiro, de certeza que me teria custado umas boas coroas. Então caminhei os muitos milhares de pequenos passos até casa. Oh, o mundo está a mudar, pensei eu. E o silêncio a alastrar. É hora de morrer.

Kjell Askildsen, conto incluído na colectânea Um Repentino Pensamento Libertador    

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