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No barbeiro (9)

Thomas

Estou a ficar tremendamente velho. Já me é quase tão difícil escrever como andar. Faço tudo devagar. Não consigo mais do que umas quantas frases por dia. E há poucos dias desmaiei. Suponho que o fim esteja próximo. Foi enquanto estava sentado a resolver um problema de xadrez. De repente, senti-me extenuado. Como se a própria vida se fosse desvanecendo. Não doía. Era apenas um pouco incómodo. E depois devo ter desmaiado, pois voltei a acordar com a cabeça no tabuleiro de xadrez. Reis e peões derrubados. Exactamente como gostaria de morrer. Mas isso talvez seja pedir demasiado, poder morrer sem dor. Se ficasse doente com dores terríveis e sentisse que a doença e as dores tinham vindo para ficar, seria simpático ter um amigo que me ajudasse a entrar no nada eterno. É certo que as leis o proíbem. Desgraçadamente as leis são conservadoras. De modo que os médicos prolongam a dor de uma pessoa, mesmo quando sabem que não há esperança. Chama-se a isto ética médica. Mas ninguém se ri. As pessoas que têm dores não se costumam rir. O mundo não é misericordioso. Diz-se que durante as grandes purgas na União Soviética se matavam os condenados à morte com um tiro na nuca a caminho das celas onde iriam aguardar pela sua execução. De repente, sem aviso prévio. Para mim isso era um lampejo de humanidade no meio de toda aquela miséria. Mas o mundo protestou: ao menos deviam ter o direito de morrer cara a cara com o pelotão de fuzilamento. O humanismo religioso tem mais que um cambiante de cinismo, bem, o humanismo em geral.

Mas como disse, acordei com a cara entre as peças de xadrez. Tirando isso, foi quase como acordar de um sono normal. Estava um pouco aturdido. Apesar disso, apenas me ocorreu voltar a colocar as peças no lugar. Mas era incapaz de me concentrar para resolver o problema. Estava a ponto de me sentar junto à janela quando tocaram à porta. Não vou abrir, pensei eu. Deve ser um evangelista a querer fazer-me acreditar na vida eterna. Têm proliferado muito ultimamente. Parece haver um surto de superstição. Mas voltaram a tocar e fiquei na dúvida. Eles costumam tocar apenas uma vez, apesar de tudo. De maneira que gritei “um momento” e fui abrir a porta, o que demorou algum tempo. Era um rapaz. Estava a vender rifas para a banda de música da escola local. Os prémios eram uma chacota não intencional para os velhos. Bicicleta, mochilas, botas de futebol e coisas desse tipo. Mas não quis parecer indiferente e comprei-lhe uma rifa. Isto apesar de não gostar daquelas bandas. Mas tinha deixado a carteira dentro da cómoda, por isso tive de lhe pedir para entrar. Caso contrário, aguardava-o uma longa espera. Ele veio atrás de mim. De certeza que nunca havia andado tão devagar. A caminho do quarto, tentei fazer passar o tempo perguntando-lhe que tipo de instrumento tocava. “Bem, não sei”, disse ele. Pareceu-me uma resposta estranha, mas supus que estivesse envergonhado. Eu tinha idade para ser bisavô dele. Talvez até fosse. Sei que tenho muitos bisnetos, mas não conheço nenhum deles. “Doem-te muito as pernas?”, perguntou o rapaz. “Não, o que acontece é que já estão muito velhas”, respondi. “Ah, está bem”, disse ele, provavelmente mais descansado. Tínhamos chegado à cómoda e dei-lhe o dinheiro. E então tive um ataque de sentimentalismo. Achei que o rapaz tinha perdido tanto tempo para vender uma só rifa que decidi comprar-lhe mais outra. “Não é necessário”, disse ele. Nesse instante senti uma tontura enorme. O quarto começou a andar à roda. Tive de agarrar-me à cómoda e a carteira caiu ao chão ainda aberta. “Uma cadeira”, disse eu. Assim que ma deu, o rapaz pôs-se a apanhar as moedas que estavam espalhadas pelo chão. “Obrigado, rapaz”, disse eu. “De nada”, respondeu. Poisou a carteira em cima da cómoda, olhou-me muito sério e disse: “Nunca sais?” Nesse momento dei-me conta de que a última vez que saíra devia ter sido a última. Não quero correr o risco de desmaiar no passeio. Isso significaria hospital ou lar de idosos. “Já não”, respondi. “Oh”, disse ele, de um modo que me fez ficar sentimental de novo. Tornei-me num velho palerma. “Como te chamas”, perguntei, e a resposta apenas fez piorar as coisas. “Thomas.” Naturalmente, não quis dizer-lhe que tinha o mesmo nome, mas deixou-me num estado de ânimo muito estranho, quase solene. Bem, não era de estranhar, pois os sinos tinham acabado de dobrar por mim, por assim dizer. Então, de repente, ocorreu-me dar ao rapaz alguma coisa que o fizesse lembra-se de mim. Já sei, já sei, mas eu não estava em mim. De maneira que lhe pedi que fosse buscar a velha coruja talhada que estava em cima da estante dos livros. “Isto é para ti”, disse eu, “é ainda mais velho do que eu”.”Oh, não”, disse ele, “porquê?” Por nada, meu rapaz, por nada. E obrigado pela tua ajuda. Fecha bem a porta quando saíres, por favor. “Muito obrigado.” Acenei-lhe com a cabeça. Depois saiu. Parecia contente. Mas talvez estivesse apenas a fingir.

Desde então tenho tido mais ataques de tonturas. Mas coloquei as cadeiras em pontos estratégicos. O quarto parece miseravelmente desordenado assim. Dá a impressão de quase não estar habitado. Mas ainda vivo aqui. Vivo e espero.   

Kjell Askildsen, conto incluído na colectânea Um Repentino Pensamento Libertador        

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